As ondas políticas

Miguel Chaia*

Publicado originalmente na Revista Cult, nº 74, ano 6, novembro/2003.
Imagem em destaque é “La Vague”, de Pierre-Auguste Renoir, 1882.

Shakespeare encena Maquiavel. Próspero d’A Tempestade executa uma coreografia política concebida a partir das lições d’O Príncipe. A representação teatral do inglês é um espelho privilegiado da visão política do florentino. No início da peça, Próspero é o legítimo Duque de Milão, dedicado à leitura na sua biblioteca e desatento às coisas de governo, então, confiadas ao seu irmão. Este desleixo político se constitui num grave erro que leva o irmão à usurpação do poder. Devido ao amor do povo, Próspero não é assassinado, mas colocado em um barco, com a filha e alguns livros, que lançado mar adentro acaba aportando na Ilha governada por Sycorax e habitada, entre outros, por Caliban e Ariel. Ali, ele instaura um principado novo e exercerá o poder de fato, fazendo revelar um desejo de conquista até então latente. Para tanto, teve que enfrentar a travessia do mar.

O príncipe Próspero sintetiza as duas maneiras que Maquiavel descreveu para a conquista e a manutenção do poder: pela violência da usurpação e pelo favor dos cidadãos. É um César Bórgia que usurpa o reino anterior e governa pela crueldade, na sua relação de governante com o resistente Caliban e, simultaneamente, é um Francesco Sforza, que mantém seu governo às custas de afanosos trabalhos, no seu vínculo com o obediente Ariel.

Próspero também é a expressão do príncipe moderno, na concepção de Maquiavel, que se descobre capaz de instaurar um governo, impondo nova ordem e aprende que a política é marcada por permanentes transformações, de tal forma que todos os estados e governos, sejam eles principados ou repúblicas, experimentam freqüentes desequilíbrios. Maquiavel insiste nos perigos colocados ao príncipe e nos erros que este deve evitar, pois a estabilidade é precária e os tempos incertos. Por isso ele alerta que um príncipe deve ter as qualidades para aprender a poder ser mau ou que se valha disso, conforme as necessidades (na dominação de Caliban); e para desejar ser tido como piedoso (na oferta da liberdade para Ariel).

O mar é a grande metáfora da política. Traduz a importância da dimensão do tempo, representa o potencial da tempestade engendrando ondas revolucionárias capazes de subverter sociedades e simboliza ondas desmesuradas que atingem governantes e governados. Para Maquiavel, a força da água é a metáfora da fortuna – arbitra de metade de nossas ações -, juntamente com o livre arbítrio – a outra metade. A fortuna é um rio impetuoso que alaga planícies e destroe a natureza e a engenharia humana. Porém, quando volta a calma, pode-se fazer reparos, canais e barragens, permitindo-se a construção de um novo espaço político. Após enfrentar a cólera do mar, Próspero reconstroe na Ilha as condições para governar.

Se Próspero fracassou como príncipe da tradição, descobrindo como é frágil a continuidade hereditária, uma vez lançado ao mar perde antigas referências e apropria-se de novas medidas. A longa travessia o auxiliou no conhecimento de que a tranqüilidade pode ser um indício de iminentes transformações e que a política é uma prática sem parâmetros permanentes. O bom governante deve entender que está sempre em alto mar, construindo a cada momento as condições da ação, encarando as contingências e as tensões do mundo.

Para Maquiavel, a política se altera constantemente no ritmo incessante das ondas do mar. E, ao final da encenação política, quando tudo parece ordenado, Próspero deixa transparecer que não encontrou as certezas ou as medidas para o exercício da política. Apesar de toda a experiência prática e do saber acumulado, continua lidando com um mundo que exige sempre ser desbravado. Maquiavel explicitou que aquele que se torna príncipe somente pela fortuna, tendo pouco trabalho para a coisa política, mantém-se no poder muito penosamente, pois o desejo de conquistar deve ser coisa verdadeiramente natural e ordinária. Próspero carrega o paradoxo de tornar-se poderoso apenas por ter sido lançado ao mar. Talvez por isso, ao final da peça, demonstre cansaço da luta ferrenha, quando seriam necessárias novas metamorfoses. Desalentado, sem desejo do poder, descobre-se sem finalidade. Pede, então, que seja libertado da Ilha.

*Miguel Chaia é professor do Departamento de Política e da Pós-graduação em Ciências Sociais e pesquisador do NEAMP da PUC-SP.

Publicado por Neamp

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