Juliana Berezoschi*
Estamos há 3 meses das eleições presidenciais marcadas por polarizações afetivas, o ódio por um lado, alimenta e sustenta o governo atual e por outro, a esperança em minimizar a continuação de uma catástrofe social estabelecida. Em detrimento desse contexto político, as redes sociais se ficam como palco para debates calorosos, sendo os memes agentes de protagonização amplamente difundidos utilizados em grande parte de forma humorística pelos seus criadores anônimos. Não é novidade que os memes de internet se destacam em campanhas eleitorais, Viktor Chagas aponta que em 2014 os meios jornalísticos enfatizaram as eleições como as “eleições dos memes”, tanto em veículos de mídia online como offline as piadas misturadas às imagens já influenciaram as redes sociais naquele ano. Os memes de internet, em sua maioria, utilizam o humor como estratégia no discurso para a propagação nas redes, porém a peculiaridade do humor político “contribui para a criação e a consolidação de uma teia de significados compartilhados, que absorve e ressignifica conteúdos da cultura popular.” (p.178)
Cunhado pelo etólogo e biólogo evolucionista Clinton Richard Dawkings, em 1976, o termo “meme” vem de memética e nasce do seu livro “O gene egoísta”, no qual o autor compara memes aos genes humanos que seria a replicação de algum material carregado de carga genética, ou no caso dos memes, de informação e que se reproduzem nos organismos ou corpos buscando pela sua sobrevivência no tempo. Essa replicação de informação genética que já ocorre na seleção natural das espécies teria duração conforme a quantidade de reprodução efetuada pelos organismos. Já no caso dos memes essa duração da informação seria a quantidade propagada na cultura da espécie humana. Para o autor, essas informações reproduzidas pelos corpos, tanto podem ser ideias, textos ou práticas culturais como por exemplo um canto ou uma piada transmitida pelas pessoas em uma determinada comunidade.
Distintamente do termo original de Dawkings, os memes de internet, tal como os conhecemos hoje tentam a disputa pela duração no tempo com o avanço da tecnologia de comunicação. A internet se tornou espaço para criatividade e novas formas de comunicação sendo os memes uma dessas novas formas. Esses podem ser considerados como uma coleção de referências culturais apreendidas em uma determinada época e que são espalhados por humanos pelas mídias sociais, sendo que o teor humorístico é uma de suas formas mais conhecidas. Seus conteúdos podem variar de forma como vídeos, imagens/escritas ou sons e tanto podem perdurar por um período como serem reproduzidos infinitamente, visto que não há possibilidade de controle do fim de sua transmissão. Por serem criados de forma anônima e em qualquer lugar, com poucos recursos – apenas conexão de internet e um aparelho eletrônico (celular, tablet ou computador) são de fácil produção. O conteúdo e a forma são duas faces que combinadas funcionam como uma fórmula assertiva para se replicarem.
Nesse sentido, quando utilizadas na política, mais especificamente em momento eleitoral, os memes podem engajar determinados tipos de opiniões ou comportamentos nas redes sociais. Combinados ao teor humorístico, podem incentivar a participação no debate público e contribuir
“para a criação e a consolidação de uma teia de significados compartilhados, que absorve e ressignifica conteúdos da cultura popular. Assim, ele atua como válvula de escape para momentos de tensão, fortalece laços de solidariedade e torna o aprendizado mais divertido, além de persuadir e, até mesmo, infundir ações coletivas (TAY, 2012)” (CHAGAS, 2017).
Pensando um pouco sobre essas informações replicadas nas redes sociais e o conteúdo político com o teor humorístico como formato de disseminar as mensagens, seja de um lado ou de outro no espectro eleitoral, como os memes políticos em tons humorísticos nos afetam?
Para elaborarmos um pouco mais sobre essas questões buscamos em Spinoza algumas considerações. Baruch de Spinoza, filósofo inspirador dessa escrita do séc. XVII, em sua principal obra, buscou não julgar os afetos humanos, mas sim compreendê-los. Pensar os afetos dessa forma é considerar corpo e mente como uma só e mesma coisa, são uma única substância, fundantes de nossa existência. Essa substância, por sua vez, busca perseverar em sua própria existência. Essa busca por perseverar em sua própria existência está em tudo na natureza, sendo o modo humano como uma extensão dessa potência da natureza a qual é concebida como conatus, força de vida que se realiza em ato. Essa força vital pode variar de intensidade de acordo com os encontros com outros corpos, sendo que essa variação vai depender de nossa capacidade de pensar da mente e agir do corpo que aumenta ou diminui nos encontros. Essa variação de potência no existir pode aumentar, quando somos afetados por alegria ou diminuir, quando somos afetados de tristeza. Assim como os outros corpos nos afetam, também afetamos os outros corpos nos encontros e essa variação ocorre em todos os corpos nos nossos encontros.
Para Spinoza, conhecemos o mundo pela experiência dos encontros e apreendemos pelas imagens do que fazemos das coisas exteriores a nós, porém tais imagens podem ser enganosas. Ainda não concebemos diretamente o mundo de forma clara, ou seja, não fazemos uma ideia clara daquilo que pode nos afetar de alegria ou de tristeza nos encontros. Portanto apenas sentimos os efeitos dos encontros sem termos conhecimento da causa do que nos afetou. Tais afetos produzidos pelas imagens que fazemos das coisas pertencem ao campo da imaginação, podem ser confusas, mutiladas e que pertencem ao primeiro nível de conhecimento para Spinoza (EII, Prop. 40).
Dentro desse primeiro nível de conhecimento que surgem as superstições, é quando somos enredados por afetos de medo e esperança, quando nos sentimos menores, dito de outra forma, quando as forças dos corpos externos são mais potentes que o nosso. É nesse contexto que essas duas paixões nos aprisionam na servidão. O medo é uma tristeza que surge da ideia de uma coisa futura da qual temos dúvida que irá ocorrer e nos coloca na impotência de agirmos por nós mesmos (EIII Def. 13). E a esperança por ser compreendida como uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura, da qual temos dúvida que possa ocorrer (EIII, Def. 12), sustentando a compreensão de que algo externo a nós mesmos poderá nos alegrar, não nos mobilizando por nossa própria força a sair dessa constelação afetiva. O que pode nos tirar desta condição de confusão que pode nos levar a servidão é conhecer a ideia adequada das causas dos nossos afetos. Segundo Spinoza, é essencial sair do primeiro para o segundo nível do conhecimento. E para fazer isso é necessário compreender a natureza de nossos afetos, o que permite nos tornarmos livres das ideias inadequadas e sentirmos a alegria do conhecimento, o que gera autonomia própria de pensar.
Nesse sentido, ao pensarmos nos encontros com os memes, esses podem tanto ser enganosos, como as fake news, por não fazermos ideias claras sobre o que transmitem como podemos também rir a respeito de qualquer tipo de informação, até mesmo o que por um determinado viés ideológico possa ser considerado algo verdadeiro. Spinoza distingue o riso do escárnio, sendo que o riso “tal como a brincadeira, é pura alegria e, portanto, desde que não seja excessivo, é, por si, bom” (E IV, Prop. 45, esc.2). Já o escárnio surge dos afetos de ódio e por isso é mau, “é uma alegria que surge por imaginarmos que há algo que desprezamos na coisa que odiamos” (E III, def. 11). Tal riso portanto, é mau uma paixão alegre de alguém já impotente e que diante de determinadas situações acredita que, para alegrar-se, é necessário humilhar o outro. Esse riso, carregado de preconceitos, se contenta com as lágrimas do outro, pois “quem imagina que aquilo que odeia é destruído se alegrará” (E III, prop. 20).
O riso oriundo dos afetos tristes nunca poderá ser bom. Por estar atribuído ao afeto de ódio, não permite que se alcancem ideias adequadas (ou ideias boas). Assim, esse é um riso solitário, que inveja e se contenta com a impotência desse outro. Já o riso bom, ou riso ético, nomeado por Deleuze, é capaz de contagiar o outro por meio do afeto da alegria. Isso ocorre num bom encontro com o outro, no qual nos tornamos capazes de aumentar a potência. O riso é bom justamente por ser compreendido pelas ideias adequadas daquilo que nos afeta, pelas afecções que nos lançam para a ação, por conservarmos a nossa conatus. Nos alegramos por ampliarmos a nossa potência, por conhecermos as verdadeiras causas do que nos afeta, seja de alegria ou de tristeza.
Assim podemos pensar os memes tanto como um bom encontro como um mau encontro, a depender do conteúdo e da forma como ele é colocado. O humor contido nos memes podem evidenciar os modos de vida, criticar os valores de uma sociedade, desvelar as nuances da desigualdade, questionar a ordem e o poder. O efeito tende a ser contagiante, porém é preciso observar se o humor contido pode nos levar para a expansão de nossa potência ou para a nossa paralisação tanto do modo de pensar da mente como de agir do corpo nos deixando ao léu da servidão.
Referências
CHAGAS, V. et al. “A política dos memes e os memes da política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes dos debates eleitorais de 2014”. Intexto, nº 38, janeiro de 2017, p. 173-96, doi:10.19132/1807-8583201738.173-196.
DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SPINOZ, B. (2008) Ética. Belo Horizonte: Autêntica
* Juliana Berezoschi é Mestre e doutoranda em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, integrante do Núcleo de Pesquisa Dialética Exclusão/Inclusão Social – NEXIN