Humor ou violência? Os memes no período do impeachment de Dilma Rousseff

Arthur Gonçalves Spada*

Os governantes invariavelmente serão alvo de programas humorísticos e de charges de humor. Seja nos momentos de alta popularidade ou em períodos de instabilidade ou crise do governo, a linguagem do humor é evocada para expressar determinado sentimento que paira no seio da sociedade, como também para enfatizar determinadas características do governante. Como com seus antecessores, Dilma Rousseff também foi objeto de piadas, imitações, charges e etc.. Todavia, o mandato da primeira presidente mulher eleita no Brasil também escancarou a misoginia contra a liderança política feminina, principalmente nos momentos que antecederam a sua remoção da presidente por meio do processo de impeachment. Serão recuperadas alguns dos principais ataques que foram dirigidos à presidente, a partir de memes que circularam pela internet no período, que retratam a forma como a presidente foi alvo desse tipo de violência fantasiado de humor.  

A gestão de Dilma Rousseff foi marcada por um ódio misógino, manifestado principalmente por meio das redes sociais. Reiteradas vezes, Dilma era associada a comportamentos promíscuos como também retratada como incapaz para o exercício do cargo, em virtude do fato de ser mulher (LOBO, 2018). A violência de gênero também se materializou nos questionamentos à sua sexualidade, feitos ao longo de toda sua gestão (SALIBA; SANTIAGO, 2016). Assim, em que pese um discurso de ódio possa ter diversos alvos, como a religiosidade, etnia, classe ou cultura, contra Dilma ficou bastante evidente a dimensão misógina, que também estava associada, em muitos aspectos, ao ódio ideológico-partidário. A esse respeito:

“O discurso de ódio político, conforme procuramos conceituar até aqui, se estrutura em duas frentes: no ato discriminatório, ou seja, na manifestação segregacionista baseada na ideia preconceituosa de que o autor do discurso é superior à pessoa atingida ou alvo do ódio; e na externalidade, na publicização do ódio com a finalidade de alijar a participação política de determinado grupo, incitar e conquistar adeptos” (LOBO, 2018).

Ou seja, Dilma deveria ser retirada da esfera política tanto por ser mulher, como pela posição ideológica assumida por fazer parte do Partido dos Trabalhadores (PT), estando associada à esquerda num momento em que o antipetismo e o conservadorismo ascendiam como força política novamente relevante e presente no interior da sociedade brasileira. Como mulher, seria incapacitada para o exercício do cargo, uma vez que o comportamento patriarcal coloca certos espaços como próprios do sexo masculino e não reconhecem a capacidade do feminino para estarem neles ou, mais e principalmente neste caso, para o exercício da liderança. No período, foi frequente que os detratores do governo, aproveitando-se da escolha pelo uso do termo “presidenta” – tendo Dilma, inclusive, sancionado a lei que autorizava a flexão de gênero em diplomas, Lei n.º 12.605/2012 – dirigiam suas críticas com o uso da expressão “presidanta”, como forma de menosprezar a capacidade intelectual da presidente.

Os papéis de gênero construídos histórica e culturalmente fazem com que a dominação patriarcal por vezes não se faça evidente, de modo que determinados comportamentos não aparecem ou não são compreendidos como formas de preconceito, agravados pelo fato do machismo se constituir enquanto um dispositivo ideológico que é adotado para a reprodutibilidade dos comportamentos tanto masculinos quanto femininos (LOBO, 2018). Assim, não só homens atuam de maneira machista, como as mulheres também podem vocalizar essas mesmas atitudes e discursos: não raro as mulheres também se voltavam contra Dilma em termos sexistas.

O machismo, sexismo e misoginia dirigidos contra Dilma mostram que a sociedade brasileira ainda trata a inclusão da mulher na política de forma bastante desigual, cujos espaços institucionais ainda não são plenamente ocupados de acordo com o número de mulheres existentes na sociedade brasileira. Assim, não só a luta pelo voto das mulheres foi árdua e lenta, como a batalha pela efetiva inclusão feminina no cenário político ainda se dá de maneira insatisfatória e com resultados ínfimos (SALIBA; SANTIAGO, 2016). O obstáculo colocado para a mulher na política não está relacionado apenas com a ocupação de um espaço que era antes apenas masculino, mas também na necessidade de enfrentar o ódio dirigido contra a figura feminina, que se apresenta tanto em discursos contrários a equidade de gênero, como nos casos explícitos de assédio e hipersexualização da mulher.

Não se ignora que esse machismo também atinge o masculino, sobretudo nas questões emocionais e na demanda por comportamentos de virilidade ou de força que impedem que estes sujeitos possam demonstrar as suas fraquezas, bem como externalizar os seus medos. Isso, evidentemente também marca as relações afetivas. (SANTOS; VELOSO, 2020). Não obstante, os inúmeros casos de relacionamentos abusivos, permeados por violência doméstica e até mesmo os casos de feminicídio, demonstram que a violência psíquica de que ambos os gêneros são vítimas, por vezes representa a violência física dirigida unicamente contra a mulher.

Essa violência está presente nos memes que circularam contra Dilma, alguns que retratavam uma agressividade mais explícita dirigida contra a presidente, enquanto outros reproduziam o comportamento machista e patriarcal que, como visto, é assimilado como algo natural e subjacente à tentativa de humor. Os memes se prestam a demonstrar uma determinada visão de mundo ou uma ideia e, além disso, podem estimular que os sujeitos emitam suas opiniões por meio deles acerca de determinado tema, principalmente quando contém uma carga de humor que facilitaria a sua difusão(SANTOS; VELOSO, 2020). Estão largamente presentes na internet brasileira e se constituem de hashtags, textos frase, foto legendas, charges, tirinhas ou vídeos de fácil circulação (WINK, 2017). Além disso,

“Uma vez que os memes marcam a atenção espontânea diante de um diálogo sem utilidade direta e imediata, a partir de expressões fundamentadas no prazer ou na distração, podemos afirmar que compreendem um tipo de conversação conforme esta é descrita porTarde (2005). Assim sendo, são, também, a forma pela qual os indivíduos se interpenetram com profundidade muito maior que qualquer outra relação social na sociedade atual. Seu efeito estabelece conexão mental através de uma comunicação irresistível e inconsciente. Por conseguinte, os memes assumem, na sociedade contemporânea, a condição de agente mais poderoso da imitação, da irradiação dos sentimentos, das ideias e dos modos de ação” (SILVA, 2019).

Assim, pode ser dito que os memes propagados com relação a Dilma Rousseff tinham a intenção de mobilizar aqueles que eram contrários à sua permanência no cargo, cultivando no imaginário social a necessidade de que ela fosse retirada da presidência, fazendo minar a sua popularidade por meio da propagação de uma imagem caricatural, que enfatizava aspectos negativos atrelados a sua figura e, muitas vezes, com o preconceito contra a mulher e o discurso misógino subjacente a peça que se pretendia apresentar como de apenas de crítica política ou sarcasmo.

A seguir, serão abordadas algumas imagens que circularam nas redes sociais em ataques à presidente Dilma Rousseff, nos momentos que antecederam a sua remoção da presidência.

Figura 1. Discurso Machista1

Nela, vê-se a expressão de Dilma como se desse uma gargalhada – ressaltando que na fotografia o riso parece esquisito e não transmite verdadeira alegria – acompanhada do texto “De quantas mulheres precisamos para acabar com o Brasil?” Embaixo da pergunta, a resposta: “Diuma”. A tentativa de piada reside no trocadilho “diuma” (de uma) feito com o primeiro nome da presidente, como forma de assinalar que ela sozinha teria a capacidade de destruir o país. Vê-se claramente a tentativa de associar a imagem da mulher com a de incapacidade para o exercício de atividades importantes, atrelando, ainda, a presidente Dilma Rousseff como a única responsável pela crise que o país atravessaria, desconsiderando o papel dos demais membros do governo ou poderes da República.

Figura 2. Preconceito com a mulher no trabalho2

A imagem acima apresenta uma montagem do rosto da presidente Rousseff no corpo de uma mulher grávida, sendo apresentado o seguinte texto: “Bomba! Dilma acaba de divulgar que está grávida para não perder o emprego!”. No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) assegura em seu artigo 391-A a estabilidade da gestante no emprego, de modo que a pessoa grávida não pode ser dispensada sem justa causa, durante o período que vai desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Tal associação, revela o pensamento machista de que algumas mulheres utilizariam da gravidez para se manterem no emprego. Assim, como Dilma estaria em vias de ser retirada do cargo, a imagem a atrela a esse pensamento preconceituoso, cujo traço humorístico também residiria em se tratar de uma situação hipoteticamente impossível, uma vez que a idade de Dilma não permitiria que engravidasse. Subjacente, também está a ideia de que a mulher não tem a capacidade de se manter empregada por suas próprias qualidades profissionais, mas precisa lançar mão de artifícios questionáveis para que se mantenha no exercício de uma profissão.

Figura 3. A mulher como frágil3

A imagem acima também associa imagem e texto. Nela, Dilma Rousseff é retrata em um discurso no qual aparece com os olhos lacrimejando e o texto afirma “Dilma Chora e diz que tudo é golpe político”. Em que pese a tese de que o impeachment de Dilma constituiu uma espécie de golpe parlamentar seja defendida por diversos autores e objeto de uma série de estudos, os favoráveis à sua remoção viam na imagem a tentativa mostrar que ela não possuía qualquer argumento válido para a defesa, o que é ressaltado pelo comportamento de choro. Ou seja, a mulher é alguém que choraria quando não tem razão, demonstrando um comportamento que é ao mesmo tempo frágil e irracional.

Por último, em que pese a imagem seguinte não tenha a figura de Dilma retratada, faz menção direta ao processo de impeachment e ao modelo de votação por voz que a população acompanhou ao longo da votação da abertura do processo, na sessão havida na Câmara dos Deputados. A imagem, apresenta a esposa de Michel Temer, Marcela Temer, que viria a se tornar a primeira dama e contem a seguinte frase “Pela Marcela Temer, eu voto sim”.

Figura 4. A mulher objeto4

Essa imagem revela o comportamento de que a figura feminina deve ostentar um determinado padrão de beleza, idealmente considerado e que coloca a mulher numa posição em que pouco importa suas demais habilidades e características particulares, mas deve ser sempre julgada por sua aparência física: Dilma seria feia e, portanto, deveria ser retirada do cargo. A imagem evoca de certa forma a manchete utilizada na época pela Revista Veja, “Bela, recatada e do lar”5, que, ao traçar um perfil da então vice primeira-dama a elogia por possuir qualidades que seriam necessárias nas mulheres e ausentes em Dilma, uma vez que esta se apresenta como figura pública, é idosa e não detentora do mesmo padrão de beleza. A mulher, portanto, deveria sempre ocupar um papel subalterno e discreto em relação ao do homem e não ter protagonismo ou ocupar cargos de liderança.

As imagens acima são um pequeno extrato do volume de peças que circulam no período que antecedeu o término da gestão de Dilma Rousseff. Desde o dia em que tomou posse em seu primeiro mandato até a saída pelo impeachment, ela foi alvo do discurso de ódio machista que é dirigido contra as mulheres, especialmente àquelas que buscam ocupar cargos e espaços tradicionalmente masculinos. Não raro as críticas contra Dilma não possuíam qualquer vinculação com aspectos técnicos ou políticos do governo, mas estavam atreladas ao fato de ela ser mulher: a escolha da roupa e seu o comportamento – se era agressiva ou chorava – foram alvo de intensos comentários nos meios de comunicação que não são vistos quando o cargo de Presidente da República é ocupado por um homem.

O processo de remoção escancarou esse fato, na medida em que os questionamentos jurídicos-políticos formulados para sua saída ajudaram a fomentar o discurso misógino que vige no seio da sociedade, no sentido de que inexistiria capacidade dela para o exercício do cargo de Presidente da República, e que este não deve ser ocupado por mulheres.  Mais uma vez, os comentários e julgamentos não eram feitor em virtude de sua capacidade técnica, mas tendo a condição feminina como objeto de ataque principal. Dilma foi ridicularizada a partir de certos estereótipos construídos historicamente e que invisibilizam a violência estrutural de gênero que existe no Brasil. 

Assim, ainda que se observem avanços quanto a participação da mulher das instituições políticas, impulsionados por iniciativas da sociedade civil e também por mudanças legislativas, é certo que ainda há muito a ser transformado para que comportamentos, opiniões ou expressões tidas por naturais sejam modificadas, de modo que as lideranças políticas femininas não sejam mais desqualificadas por sua condição e o enfoque patriarcal, machista e misógino perca espaço na sociedade brasileira. Daí também, a necessidade de que vozes que busquem a emancipação da mulher e a garantia de equidade de gênero também ocupem em demasia os espaços públicos, e tenham, quiçá, a capacidade de se disseminar de maneira virtual na linguagem do meme, de modo a atuar em prol dessa transformação.


*Arthur Gonçalves Spada é mestrando do programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, especialista em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Notas

[1] Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/483714816219479125/. Acessado em 05 de julho de 2022.

[2] Disponível em https://br.ifunny.co/picture/mjG4mM8a5. Acessado em 06 de julho de 2022.

[3] Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/v3xSwz4scVmSrwXcRjRSphh/?lang=pt&format=pdf. Acessado em 06 de julho de 2022.

[4] Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/6499/1/ICardoso.pdf. Acessado em 05 de julho de 2022.

[5] Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/ Acessado em 06 de julho de 2022.

Referências

LOBO, Dênis Carneiro. A campanha pela deposição de Dilma: O ódio nas redes sociais. In: O golpe de 2016: Razões, Atores e Consequências/Organização de Luiz Antonio Dias e Rosemary Segurado. Apresentação de Luis Felipe Miguel – São Paulo: Intermeios; PUC-SPPIPEq, 2018, p. 13-32.

SALIBA, Maurício Gonçalves; SANTIAGO, Brunna Rabelo. Bailarinas não fazem política? Análise da violência de gênero presente no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 21, n. 21, p. 91-105, dez. 2016.

SANTOS, Lorena Danielle; VELOSO, Ivana. A deposição de Dilma Rousseff através dos memes: um olhar sobre a misoginia, machismo e sexismo. In: Temporalidades Revista de História. v. 12 n. 3 (2020): Edição 34 – Temporalidades, Belo Horizonte, p.  257-279, set./dez. 2020.

SILVA, Patrícia Rilliane Gomes da. A insolência de um pensamento complexo: os memes do impeachment de Dilma Rousseff. 2019. 104f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

WINK, Georg. Humor golpista: memes sobre Dilma Rousseff durante o “impeachment”. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 27, p. 123-140, 10 set. 2018.

Publicado por Neamp

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