Silvana Martinho1
“O cartunista pode mitologizar o mundo ou tentar espalhar ilusões. Pode inflar a frase estúpida e dar-lhe uma vida especiosa própria, ou desinflá-la por uma comparação da retórica com as realidades que ela descreve” (GOMBRICH, 1999:142).

Fonte: ANGELI. Folha de S. Paulo, 10.04.1995

Fonte: ANGELI, Folha de S. Paulo, 08.08.2003

Fonte: JEAN, Folha de S. Paulo, 25.04.2016
Oficializar a história latente de cada governante a partir da seriedade de cada foto é um dos objetivos da Galeria dos Presidentes, no Palácio do Planalto, em Brasília. Na série cronológica de retratos oficiais dos Presidentes da República, realizados no início de seus governos, a imagem de todos que encerraram os seus mandatos está em preto e branco, e a do presidente em exercício é colorida. Abaixo de cada quadro há uma placa que informa o nome do presidente e o ano de seu nascimento. Escancarar o não oficial, demonstrar a partir dos traços exatamente o que aqueles que governam e as instituições que o legitimam querem esconder é uma das principais características da caricatura política. No caso da Galeria dos Presidentes, a partir da paródia que se efetua por meio de uma repetição intencional, mas uma repetição que inclui diferenças, permitem-se discussões e debates que povoam o imaginário em torno da representação da liderança política.
Caricatura, metáfora, condensação, comparação e contraste podem ser citados como elementos utilizados pelos chargistas quando o plano de fundo era a “Galeria dos Presidentes”, seja na condensação e comparação do retrato infantilizado de Fernando Henrique Cardoso (FHC) a partir de um emoji sorridente (Fig. 01), seja na metáfora da fragilidade política de Luiz Inácio Lula da Silva ao chegar ao poder, devido aos estilhaços de vidro quebrado em seu quadro (Fig.02), seja no contraste presente na substituição do quadro na parede para o pequeno porta-retratos que desloca Dilma Rousseff do poder (Fig.03). A partir de um mesmo cenário, nos diferentes governos, mais de uma vez, a Galeria dos Presidentes foi utilizada para desoficializar as imagens das lideranças políticas e colocar em disputa as narrativas sobre os acontecimentos que envolvem os presidentes da República brasileira.
Foi a partir da busca de séries como essas, com temas e estruturas comuns, que se organizou a tese que inspira este texto: Sorrisos desconfortáveis: a representação da liderança política por meio de charges do jornal Folha de S. Paulo. Na qual buscou-se compreender como os presidentes do Brasil, durante um período de certa estabilidade democrática (1995 – 2016), foram representados no seu papel de liderança política, por meio da análise das charges publicadas na mídia impressa, especificamente do jornal de circulação nacional “Folha de S. Paulo”.
Estudar as representações, por meio das charges, dos presidentes do Brasil se faz importante, pois elas aparecem como parte integrante das atribuições simbólicas do período. Dentro do fenômeno da liderança política no Brasil, pretende-se contribuir para uma reflexão sobre a relação entre humor e política.
Acredita-se que, ao apresentar as charges em séries com representações das lideranças políticas durante seus respectivos mandatos, publicadas entre 1995 e 2016, é possível compreender como as lideranças políticas foram parodiadas pelo desenho gráfico e responder às seguintes questões: Quais características de liderança foram utilizadas para representá-los? Como as mesmas temáticas representaram as diferentes lideranças? No decorrer do tempo, a representação da liderança política nas charges assemelha-se ou diferencia-se, por conta dos contextos e da conjuntura política ou devido ao ator político que ocupa o poder? Quais as principais disputas de poder, no período? É preciso lembrar que o fenômeno da liderança política é entendido, nesta tese, como resultado de contextos e temporalidades específicas. Assim, olha-se para as charges compreendendo-as, de acordo com Saliba (2002), como uma forma privilegiada de narrar a história. Por isso, acredita-se que a contextualização do período em que cada liderança ocupou o poder é um importante recurso para identificar que tipo de liderança emerge dos desenhos gráficos de humor.
Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica de diferentes autores (McCombs: 2004; Wu e Guo: 2017; Dalton et al. 2017; Beckers et al.:2017; Tedesco: 2005), sobre as relações entre mídia e política que partiram da teoria da agenda setting contribuem para a problematização da agenda da mídia no que diz respeito à construção da representação da política, assim como da liderança política.
Analisar a agenda da charge é fazer um recorte da agenda da mídia a partir do olhar do chargista. Mais do que a identificação de quais temas foram selecionados para chegar ao leitor como uma narrativa sobre as questões políticas que envolvem a sociedade, está a percepção de quais temas da mídia foram revistos pelo olhar humorístico, para apresentar uma nova leitura ou reforçar a leitura predominante.
Dentro da agenda humorística, os temas do campo político foram: (1) Escândalo, (2) Economia, (3) Campanha Eleitoral, (4) Governabilidade e (5) Relações Internacionais. Nos três governos, a temática em torno da governabilidade foi aquela com maior incidência.
As séries em torno da temática “Governabilidade” advêm de um olhar sobre o termo calcado na ideia da capacidade dos governantes de tomarem decisões que possam atender às demandas dos governados e viabilizar a reprodução das condições de preservação do poder. Compreendem o retrato das coligações feitas, não somente no período eleitoral, mas durante o mandato, com vistas a garantir um cenário político no qual o poder executivo fosse capaz de construir as condições para exercer plenamente as suas atribuições. Compreendem também a formulação e implementação de políticas públicas para responder às demandas colocadas na agenda política interna e a relação com a composição do corpo ministerial por parte do/a presidente/a. Além disso, abrange a relação com os adversários políticos na disputa pelo poder, assim como as manifestações contrárias aos seus governos.
Acredita-se que são as características de governabilidade que apresentam mais elementos para responder às perguntas propostas neste estudo, por exemplo: Com quais características de liderança os presidentes foram representados? Isso porque, ao abordarem esse tema, os chargistas caracterizam ambiguidades em torno da capacidade ou incapacidade política de decidir do governante, sua eficiência ou ineficiência em implementar suas políticas públicas e a articulação e formação de sua base aliada. Dependendo do contexto político, do presidente em mandato, as relações entre Executivo e Legislativo podem ser distintas, e a composição do Ministério pode ter características próprias.
As democracias modernas são assentadas no que Dahl (2005) definiu como pluralismo político que, organizado em partido e movimentos sociais, pode influenciar os processos de tomada de decisão. Dentro da temática da governabilidade, a oposição apresenta um papel determinante para a democracia, pois, além de ser permissiva, é importante e institucionalizada, com regras para a sua realização. Supõe-se que a promoção de um debate político de qualidade está inserida em um ambiente marcado pela presença de diversas opções políticas.
Em conjunto com a análise da agenda de temas presentes nas charges publicadas no jornal Folha de S. Paulo entre 1995 e 2006, considera-se importante observar a forma como esses temas aparecem em referência às lideranças políticas. Cabe, portanto, estudar o enquadramento com o intuito de compreender com quais características de lideranças políticas os presidentes do Brasil foram representados nas charges.
De acordo com Hackett (1993), o conteúdo produzido pelos veículos de comunicação desempenha relevante papel político e ideológico, para além do âmbito da imparcialidade ou objetividade, na medida em que são produzidos com base em uma matriz ideológica limitada. A estrutura dessa matriz seria fundamentada por um conjunto de regras e conceitos utilizados pelos jornalistas, de forma consciente ou inconsciente, mas isenta de uma ação deliberada com objetivo de iludir ou manipular o leitor. Essas regras e conceitos, que podem ser percebidos na forma como os jornalistas produzem o noticiário, são denominados enquadramentos.
A partir das proposições de Hackett (1993), Tankard (2001) afirma que o conceito de enquadramento pode servir como um importante instrumento para analisar o papel da mídia na construção do que Gramsci (2007) chamou de hegemonia, ou seja, na direção intelectual e moral na sociedade civil.
Para Goffman (1986), o enquadramento é definido como o princípio de organização que governa os eventos sociais e o envolvimento dos indivíduos nesses eventos, ou seja, a forma como a percepção sobre tais eventos se dá é resultado dos enquadramentos, e são eles que permitem identificar o que ocorreu em determinada situação. Assim, enquadramentos, para o autor, são marcos interpretativos construídos socialmente que fazem com que as pessoas percebam um sentido dos eventos e das situações sociais.
Ao sintetizar os estudos sobre o enquadramento, Entman (1994) definiu-o como a capacidade de “selecionar” alguns aspectos de uma realidade tornando-os mais “salientes”, com o intuito de imprimir uma definição, recomendação, interpretação ou avaliação do episódio narrado.
No Brasil, os estudos que buscaram estabelecer relações entre mídia e política utilizaram o conceito de enquadramento, como a análise, desenvolvida por Albuquerque (1994) sobre a cobertura do programa jornalístico da Rede Globo, o Jornal Nacional, durante a campanha eleitoral à presidência da República. Nesse estudo, o autor identificou que o tempo dedicado aos principais candidatos, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foram distintos, assim como o enquadramento apresentou traços de união e consenso em torno do candidato do PSDB e de conflitos e discórdias na apresentação do candidato do PT.
Para Azevedo (2017), a tensão entre a estrutura ideológica da grande imprensa liberal, defensora da não intervenção do Estado na economia, e o projeto petista socialista e nacional desenvolvimentista atenuou-se quando o Partido dos Trabalhadores, com a Carta aos Brasileiros, adotou um discurso e uma prática social democratas. Além disso, explorou questões em torno das desigualdades sociais, das políticas de redistribuição de renda e apresentou soluções dentro da ordem capitalista e, por isso, venceu a eleição de 2002.
Essa trégua, segundo o autor, foi interrompida devido ao escândalo do “mensalão” e a saída de Antônio Palocci do Ministério da Fazenda, com a desqualificação da imagem ética do partido e a construção de uma forte narrativa em torno do antipetismo, com o pacote interpretativo da corrupção. Apesar das vitórias petistas nas eleições de 2006, 2010 e 2014, Azevedo (2017) afirma que a imprensa manteve um enquadramento negativo para o PT.
Porto (2001) resgata uma série de pesquisas (Patterson, 1993; Robinson e Sheehan, 1983; Hallin, 1994) que apresentam os enquadramentos utilizados na produção de notícias como o “enquadramento corrida de cavalo”, com o qual os jornalistas apresentam a eleição destacando o desempenho dos candidatos nas pesquisas de intenção de voto e nas estratégias tomadas para a manutenção da primeira posição ou para alcançar melhor desempenho.
Para exemplificar pesquisas em períodos não eleitorais, o autor cita a pesquisa de Lawrence (2000), que identifica o “enquadramento do jogo”. Nesse enquadramento, a mídia compreende a política como um jogo de forças, e as notícias são pautadas nas estratégias em torno das ações e intenções dos políticos/jogadores.
Com o intuito de melhor distinguir as fronteiras entre os tipos de enquadramento, Porto (2002) delimita dois tipos de enquadramentos: o “noticioso” e o “interpretativo”. Diferentemente de Nelson e Willey, Porto (2002) engloba no enquadramento noticioso o enquadramento temático. Assim, o enquadramento noticioso, definido como os padrões, seleção e ênfases utilizados pelos jornalistas para organizar e apresentar a notícia, seria o “ângulo da notícia” que, como resultado, teria uma ênfase seletiva, que influencia a forma como se percebe determinada realidade.
Nesta categoria estão, por exemplo, ‘o enquadramento de interesse humano’, que focaliza a cobertura de indivíduos, ou o ‘enquadramento episódico’, com sua ênfase em eventos. No plano da cobertura de eleições, por exemplo, estariam nesta categoria o ‘enquadramento corrida de cavalos’ e o ‘enquadramento temático’, ressaltando, respectivamente, o desempenho dos candidatos nas pesquisas e suas propostas programáticas (PORTO, 2002: 16).
Já o interpretativo, de acordo com Porto (2002) seria uma avaliação particular de temas ou eventos políticos, definindo problemas e avaliações sobre causas, responsabilidades, problemas e soluções. Além disso, seria realizada por diferentes fontes que não necessariamente os jornalistas, como os representantes do governo e movimentos sociais, incluindo-se até mesmo influenciadores digitais.
Os estudos sobre enquadramento seguem uma linha de análise da grande imprensa e de textos jornalísticos, ignorando outras linguagens. Para contribuir com um tópico pouco explorado nessa literatura, buscou-se identificar o enquadramento das lideranças políticas nas charges durante os mandatos dos três presidentes da República eleitos e reeleitos.
Apesar de Porto (2002) afirmar que uma diferença entre os dois tipos de enquadramento se refere à fonte (noticiosos criados por jornalistas e interpretativos criados por atores sociais), esta tese inclui os chargistas que publicaram no jornal Folha de S. Paulo no enquadramento interpretativo, posto que as charges traduzem conceitos e símbolos abreviados do discurso político para situações metafóricas (GOMBRICH, 1999).
Ainda que alguns chargistas, ao caricaturarem as campanhas eleitorais, tenham utilizado enquadramentos noticiosos, como a corrida de cavalo, ao analisar as características de liderança que emergem das charges, buscaram identificar os enquadramentos interpretativos em torno dos temas da política de forma específica.
A análise do lugar que os chargistas deram para os presidentes da República nos desenhos gráficos de humor, durante seus respectivos mandatos, permite perceber a centralidade do olhar para aqueles que ocuparam o poder e as características de lideranças políticas exploradas nas charges.
Cinco foram os tipos de enquadramento da liderança identificados nas charges e que perpassam os diferentes assuntos em torno da temática da política: Liderança Resoluta; Liderança Desgovernada; Liderança Personalista; Liderança Corrompida; e Liderança Marionete.
Fernando Henrique Cardoso: Liderança Deslocada

Fonte: JEAN, Folha de S. Paulo, 24.08.2002.
Acadêmico, sociólogo, experiente politicamente, pois foi o nome do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso foi eleito, em 1994, como uma liderança de virtù, em um contexto marcado por condições propícias, para o que Girardet (1987) indicou como a construção do imaginário de salvador.
Em 1992, o Brasil, que tinha se redemocratizado e eleito um presidente da República, depois de vinte e um anos de Regime Militar, viveu o primeiro processo de impeachment da história do país e a renúncia de Fernando Collor de Mello.
De acordo com Alves (et al., 2019), naquele ano os discursos de Fernando Henrique Cardoso estavam alinhados com o combate à inflação e com a proposta de conciliação dos grupos políticos na condução da nação. A imagem construída na campanha eleitoral de 1992 era a do grande homem, sereno, competente, honesto, equilibrado e dotado da seriedade que faltava ao país, aquele que tinha estudado, estava preparado e já demonstrava o sucesso de seus feitos com o Plano Real.
As charges, publicadas ao longo do mandato, exploraram o contrário dessas qualidades, colocaram FHC como o avesso do grande homem, como um político desgovernado, que desconhecia a realidade do Brasil e aspirava a uma vida em países do chamado primeiro mundo.
O enquadramento predominante, utilizado pelos chargistas, para representá-lo foi o da Liderança Desgovernada (38,17%), mas os enquadramentos Liderança Marionete (17%), Liderança Resoluta (16%), Liderança Personalista (15,8%) e Liderança Corrompida (12%) também foram bastante explorados.
Os enquadramentos de Liderança Resoluta, Personalista, Marionete e Corrompida apresentaram índices de incidência muito próximos. A charges com a representação de FHC como uma liderança resoluta o colocavam decidido e seguro dos passos que deveria seguir no embate com Luiz Inácio Lula da Silva e nos resultados favoráveis às privatizações realizadas em seu primeiro mandato (Vale do Rio Doce 1997 e Telebrás 1998), além da expectativa frente à contenção da dívida pública.
A Liderança Personalista foi explorada nas barganhas políticas de FHC, que realizava a troca de cargos públicos com os integrantes do Partido da Frente Liberal (PFL) para conseguir apoio às pautas do seu governo e, principalmente, a compra de votos e o uso da máquina do Estado para aprovação da emenda constitucional, no 16, de 4 de junho de 1997, a emenda da eleição. Na mistura da política com o futebol, no contexto da Copa do Mundo de 2002, houve a tentativa de valorizar o resultado do pentacampeonato da seleção brasileira como um feito do seu próprio governo. Na mistura entre política e carnaval, a festa popular brasileira foi um instrumento para disfarçar as questões políticas que atravessavam o governo.
Ainda no enquadramento personalista, identificou-se o uso privilegiado do lugar de governante para dificultar os efeitos de investigações de corrupção em seu governo, além da busca por uma aproximação com o povo e com as políticas sociais para aumentar o capital político e manter o poder.
A sujeição de Fernando Henrique à influência política, no primeiro mandato de Antônio Carlos Magalhães e em ambos, aos interesses do Fundo Monetário Internacional, foi parodiada com o enquadramento Liderança Marionete. O governo era guiado por figuras que não tinham competência, dentro da República, para impor os caminhos que o país deveria seguir.
Assim que assumiu o poder, FHC abandonou a figura do sereno intelectual, do sociólogo acadêmico. Esse abandono foi bastante explorado nas charges com o enquadramento Liderança Corrompida. Atrelado à negação de tudo o que ele já escrevera, os chargistas destacaram o interesse, a valorização, o deslumbre e o desejo do presidente, não de transformar o Brasil em uma França, mas de viver na França.
Se, no primeiro mandato, os chargistas desenharam Cardoso como uma liderança resoluta na condução das privatizações e da agenda positiva de aprovação das emendas. No segundo mandato, em contrapartida destacaram os incólumes efeitos da privatização e do aumento da dívida pública, assim como a incapacidade do presidente para alterar os rumos da política econômica, com a alta do dólar.
Nas charges, FHC desconhecia a realidade política, econômica e social do Brasil e desconhecia os caminhos possíveis para alterar os rumos do país. Esse desconhecimento foi se tornando cada vez mais um desinteresse denunciado nas charges como um abandono político por parte do presidente, derrotado pela inércia e sem forças para conduzir a sucessão de seu governo.
A imagem da liderança de Fernando Henrique Cardoso, desenhada pelos traços dos chargistas, foi a de um líder alheio às competências daquele que ocupava o mais alto cargo em uma República: nem operava a política, nem liderava o país.
O enquadramento mais utilizado pelos chargistas para representar FHC foi a Liderança Desgovernada. A partir desse enquadramento pode-se definir Fernando Henrique Cardoso como uma liderança alheia, incapaz de responder politicamente às demandas econômicas, políticas e sociais enfrentadas pelo Brasil.
Absorto, distraído, alheado, desatento, desinteressado, embaraçado, desligado, inerte, infantilizado, distante, ingênuo, alienado, alucinado, amedrontado, desequilibrado, despropositado, paralisado, desinformado e deslocado foram algumas das características imputadas nas caricaturas de FHC, quando o enquadramento era a Liderança Desgovernada.
Luiz Inácio Lula da Silva: Liderança Cordial

Fonte: ANGELI, Folha de S. Paulo, 02.11.2006.
Nas charges, Luiz Inácio Lula da Silva foi representado como uma liderança política que, ao ser eleito presidente da República, se deixou dominar pelo poder que o cargo representava e que, por isso, abandonou a origem sindicalista, a ideologia socialista e as históricas bandeiras de luta do Partido dos Trabalhadores.
De acordo com Alves (et al., 2019), na campanha presidencial essas mudanças já estavam sinalizadas. O candidato das campanhas de 1989, 1994 e 1998, com vestimentas populares e discursos enfáticos contra os capitalistas, não existia mais.
O candidato de 2002 usava terno e gravata, dialogava com a voz calma e tinha ao seu lado, como candidato a vice, o empresário José Alencar. Essas mudanças estavam atreladas às do próprio partido e ao projeto de poder conciliador divulgado na “Carta ao povo brasileiro”.
Outro elemento, presente na campanha eleitoral de 2002, segundo Carreirão (2003), correspondeu à ideia de descontinuidade com relação ao governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que, apesar de conter a inflação, não venceu o desemprego. As questões sociais foram abordadas sob a ótica de um candidato de origem popular que tinha vivenciado os problemas do Brasil e que, ao lado do povo, poderia enfrentá-los.
Essa ruptura com o governo de Fernando Henrique Cardoso não foi percebida nos traços dos chargistas, pelo contrário, muitas foram as caricaturas de Lula com o semblante e as atitudes semelhantes àquelas praticadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso quando a agenda era economia.
Os enquadramentos predominantes utilizados para representá-lo foram: Liderança Personalista (36,8%); Liderança Desgovernada (33,1%) e Liderança Corrompida (15,4%). O enquadramento Liderança Corrompida, bastante explorado em torno da temática governabilidade, expôs a suscetibilidade de Lula aos efeitos que uma posição de poder poderia gerar. Desconectou-se dos valores que sempre defendera e da empatia com as demandas daqueles que estavam sob o seu governo. Nas charges, a manutenção do poder era atravessada pela contradição entre o sindicalista e o presidente. Seria a antítese das bandeiras defendidas pelo governante em sua trajetória política.
Aristóteles (2007) e Maquiavel (2010) já apontavam os riscos e vícios do poder; a partir do momento em que alguns adquirem o poder, suas características mais vis podem ser reveladas, e eles se autodestroem. Nessa mesma linha, há a famosa frase atribuída a Abraham Lincoln (presidente dos EUA no período 1861 – 1865): “quase todos os homens são capazes de aceitar adversidades, mas se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”.
Essa ideia de que o poder corrompe os homens é parodiada com características do grotesco, indicando a monstruosidade do poder e o horror que transforma ou desmascara o governante, quando tomado por ele.
O desejo de se manter no poder também apareceu nas caricaturas de Lula aconselhando Deus, metamorfoseado como o próprio Deus e considerando ser capaz, de governar, não só o Brasil, mas também o mundo.
O debate em torno da sucessão presidencial foi destacado nas charges com o enquadramento Liderança Corrompida. Por um lado, a possibilidade de um terceiro mandato, devido ao índice de aprovação de 80% no final do segundo mandato, e por outro lado, Dilma Rousseff era representada como a criatura que emergia das mãos de Lula, seu criador.
Os enquadramentos Liderança Desgovernada e Liderança Resoluta, apesar da significativa diferença quantitativa (33.1% e 9,1%, respectivamente), foram utilizados na referência da temática economia e governabilidade, devido aos embates políticos e aos resultados econômicos.
Quando os assuntos eram o baixo índice do Produto Interno Bruto (PIB) e o equilíbrio da inflação, Lula era representado como uma liderança desgovernada, inerte e incapaz de tomar uma decisão para alterar a situação econômica. Já quando a manutenção do valor do dólar estava baixo, ele era caricaturado como uma liderança resoluta, dotada de certeza na forma como conduz a máquina do Estado.
Ademais, os chargistas revezavam seus traços entre o enquadramento desgovernado e o resoluto, de acordo com as disputas políticas entre o governo e os parlamentares ou movimentos sociais, em torno da aprovação das reformas.
É o enquadramento personalista que permite dizer que a liderança que emerge das charges na forma de representar Luiz Inácio Lula da Silva é a cordial, desenhado à frente do seu partido e das instituições, com traços autoritários na forma como lidou com os críticos, no abandono daqueles que poderiam prejudicar sua imagem política e na mobilização política para se blindar das marcas de corrupção.
Não foi só com base no populismo presente entre os governantes da América Latina, com carisma e políticas sociais, como o programa Bolsa Família, responsável pela retirada de parte da população brasileira da extrema pobreza, que o enquadramento que prevaleceu nas charges com caricaturas de Luiz Inácio Lula da Silva refletiu o personalismo. Apesar das charges destacarem o uso do programa para o aumento do capital político, elas também direcionaram o olhar para os limites do Bolsa Família e para a manutenção da pobreza no país como uma estratégia para se manter no poder.
As caricaturas de Lula reforçam a compreensão de Faoro sobre a elite patrimonialista, com um governo que agregava diferentes classes sociais, perpassando o autoritarismo e a imagem do pai do povo.
Dilma Rousseff: Liderança Isolada

Fonte: ANGELI, Folha de S. Paulo, 14.04.2015.
A liderança política de Dilma Rousseff nas charges foi construída com base na sua incapacidade de agir, na sua dificuldade para fazer a sua vontade política ecoar e se transformar em criação política. Ela foi caricaturada em um lugar de refém das vontades e ações de seus aliados, que estavam prontos para tomar o lugar da presidente, assim como da eminência parda de seu antecessor e padrinho político.
Na campanha eleitoral de 2010, a imagem da liderança de Rousseff foi preparada, de acordo com Martins (et al., 2018), com base nas suas capacidades pessoais de gestora, na condição de gênero, como mãe, mulher, cuidadora da nação e como herdeira autorizada de Lula.
Nas charges, durante o mandato, a representação da liderança destacou a dificuldade de Dilma Rousseff na administração desses elementos para manter-se no poder. Os enquadramentos predominantes utilizados para representá-la foram: Liderança Resoluta (15,6%); Liderança Desgovernada (56,7%) e Liderança Marionete (19,7%).
O enquadramento Liderança Resoluta foi utilizado pelos chargistas para destacar as tentativas de Dilma Rousseff de controlar a influência dos aliados em seu governo, acabar com os casos de corrupção, alterar os seus ministros, na relação com o Lupi, e na forma de apresentar-se ao mundo, durante seu primeiro mandato, nos encontros na Europa e na ONU, onde apresentava o Brasil em uma perspectiva positiva, com destaque para a sua presença como primeira presidente mulher do país.
Poucas foram as charges que representaram Dilma Rousseff como uma liderança personalista, mas quando ocorreram foi em relação a sua tentativa de usar programas de governo, como o “Mais médicos”, ou a Olimpíada do Rio de Janeiro, de 2016, para aumentar seu capital político e se reeleger.
O enquadramento Liderança Marionete, contrário de Resoluta, representou Dilma Rousseff, não apenas na incapacidade de impor sua vontade e dar uma identidade ao seu governo, mas também como refém das vontades de seu padrinho político, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos aliados do PMDB.
A “eminência parda”, Luiz Inácio Lula da Silva, que, apesar de não ocupar cargo que lhe garantisse posição de mando no governo Rousseff, influenciou a detentora dessa posição. Representado como conselheiro e como o próprio governante, atuou como titereiro e controlou as ações da presidente.
Os espaços de poder conquistados e a pressão política que os aliados exerceram durante os dois mandatos de Dilma Rousseff foram representados, nas charges, com traços e características que os colocavam como articuladores do poder. Sem demonstrar força ou capacidade política para reagir e manter-se como governante, a presidente foi se isolando politicamente. Nas charges, esse isolamento apareceu como um facilitador para os aliados atingirem seu objetivo.
A influência da mídia e o exercício constante de culpabilizar o Partido dos Trabalhadores de todos os males que afetavam o Brasil, no período, também foram representados como elementos que influenciaram o resultado do processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Rousseff foi caricaturada, não apenas em sua inação, mas também em ações que, mesmo carregadas de esforço, não alteravam o curso político.
O isolamento de Dilma Rousseff foi o elemento de maior destaque nas charges com o enquadramento liderança desgovernada. A dificuldade da presidente para dialogar com os parlamentares, com a mídia e com seu próprio partido foi explorada nas charges, colocando-a como aquela que optou pelo isolamento e, também, como aquela que, quando sozinha e incapaz de se manter no poder, buscou reaproximação com o Partido dos Trabalhadores e com seu padrinho político, mas se viu mais isolada ainda.
Isolada, Dilma não foi representada como uma liderança que conduzia o Brasil a algum lugar, pelo contrário, não sabia aonde chegar e, acuada e imobilizada, ficou pelo caminho.
Considerações finais
As charges políticas do jornal Folha de S. Paulo atuam no sentido de desconstruir uma imagem crível e capaz de conseguir adesão ou manutenção do poder.
O espaço atribuído às charges, no jornal Folha de S. Paulo, entre 1995 e 2016, foi utilizado como uma coluna gráfica que não precisa dialogar com a capa, o editorial ou qualquer espaço do jornal. Uma coluna marcada pela denúncia dos debates políticos do período, destacando, não só o que os governantes queriam esconder, mas também os limites, as dificuldades e os interesses de cada um deles.
As charges expressaram a antítese das qualidades que um líder deveria possuir, demonstrando o que a liderança pretendia esconder, desconstruindo as narrativas e expondo as incoerências entre os valores defendidos pelos governantes em suas trajetórias e sua atuação política durante os mandatos.
O estudo da liderança política por meio da sua representação humorística reafirma a compreensão das charges como um documento histórico, por meio do qual é possível identificar os acontecimentos políticos, sociais e culturais, assim como compreender as disputas de poder do período observado. A análise demonstrou uma ampliação do debate em torno da representação da liderança política para além do âmbito institucional, compreendendo-a na relação entre humor e política.
Essa relação é entendida como um incentivo à reflexão, aquele que Pirandello (1996) chamou de “sentimento do contrário”. Ainda que, por vezes, nos traços dos chargistas tenha existido o risco de produzir leituras em consonância com as referências presentes na sociedade e na imprensa, as charges conseguiram, na escolha do exercício humorístico de levantar problemas, provocar sorrisos desconfortáveis.
Notas
1 Doutora e mestre em Ciência Política pela PUC-SP, pesquisadora NEAMP e idealizadora do Observatório de Humor e Politica.
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