Fabricio Amorim1
O programa semanal Custe o que Custar (CQC) exibido na TV Bandeirantes entre 2008 e 2015 foi relevante para dar visibilidade as ideias misóginas, racistas, preconceituosas de Jair Bolsonaro. Os quadros “o povo quer saber” e “documento especial”, exibidos em março de 2011, foram escolhidos neste ensaio de maneira típica ideal para refletir essa exposição. O agendamento da mídia deu visibilidade para que o pensamento reacionário de Bolsonaro[2] alcançasse pessoas que tinham optado pelo silêncio no debate público, mas que tinham a mesma visão de mundo do então deputado, num movimento que ascende ao encontro da doutrinação de Olavo de Carvalho pelas guerras culturais.
Na medida em que os enfrentamentos realizados pelos feminismos, grupos LGBTQIA+ e antirracistas, ocuparam mais espaços no campo do Estado com políticas públicas direcionadas a estas populações e inserção nos processos decisórios nas instituições, estabelecendo assim, novas estruturas erguidas por quem era excluído, parcelas das direitas encontravam-se desorganizadas para reagir a essas pautas e inserir o Brasil nas guerras culturais que já aconteciam em outras partes do mundo. Vivemos na segunda década do século XXI um momento histórico em que estruturas estruturadas conservadoras são reconfiguradas por estruturas estruturantes na qual diversos habitus (BOURDIEU, 2021) progressistas lutam pela sua própria autorização nos discursos no espaço social.
Cansados dos insultos, dos estereótipos, das violências físicas e simbólicas, essas minorias atuam pela ampliação de suas vozes e pelo fim de uma dominação afrontosa, condenando o machismo, o racismo e a homofobia. No sentido contrário, a recusa na aceitação de discursos discriminatórios de parcelas dominantes gerou a queixa de que esses movimentos agiriam de maneira “politicamente correta”. A desaprovação de certas expressões resultou na reação ultra conservadora de que o politicamente correto se situa em oposição a liberdade de expressão (CORREA, 2022: 19). Na realidade, o termo serve como escudo para desqualificar críticas e tentar naturalizar ofensas. Em discussões sobre as fronteiras do humor, a liberdade de expressão quase sempre é invocada. Piadas com minorias objetificando pessoas LGBTQIA+, pessoas negras, mulheres, e outras minorias, apontando diferenças nos corpos que não atendem um padrão normativo construído, usam a liberdade de expressão para circular os insultos como pretensão de humor.
A racionalidade inclusa nas guerras culturais se fortaleceu com o autor ultraconservador, William Lind, que associou o politicamente correto ao marxismo cultural. Mais à frente o termo ideologia de gênero foi incluído nesse debate. O aumento do uso do conceito de ideologia de gênero objetiva barrar as pautas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ (BIROLI, MACHADO, VAGGIONE, 2020: 37). Barrar pautas objetiva interromper o avanço estruturante desses movimentos no espaço social, buscando até retroceder direitos conquistados.
O marxismo cultural é apresentado por parcelas da extrema direita como um projeto de dominação das esquerdas que visa tomar as instituições de Estado através da hegemonia pela cultura (CORRÊA, 2022: 26) não pela revolução armada. Os feminismos, o antirracismo e grupos LGBTQIA+ fariam parte do marxismo cultural com a estratégia da ideologia de gênero e politicamente correto que atacariam as bases da família patriarcal heteronormativa. Segundo esta visão, a degradação moral contaminou as instituições, o que leva a uma luta antissistema para restaurar a ordem moral perdida, ou seja, retomar a dominação sobre estes corpos. A solidificação desse pensamento que une marxismo cultural e politicamente correto ocorreu a partir de Lind, mas foi reforçado com o “Livro Negro da Nova Esquerda, dos argentinos Agustín Laje e Nicolas Marques” e com publicações de Olavo de Carvalho (CORRÊA, 2022: 29).
Olavo de Carvalho ajudou a criar um sistema de crenças baseado no marxismo cultural que alimentou o espectro de extrema direita no Brasil (ROCHA, 2022: 31). Com o clima de opinião (NEUMANN, 2017) favorável ao combate aos preconceitos, na primeira década do século XXI, Carvalho utilizava o conceito de espiral de silêncio (NEUMANN, 2017) para explicar que por muitos anos houve direitas em quietas após a redemocratização. A racionalidade olavista formou subjetividades, garantindo a circulação da reação conservadora. O discurso preconceituoso e de ódio ganhou impulso de coragem para se mostrar e se defender perante o uso equivocado da liberdade de expressão. Quando esse discurso é confrontado, acusações de censura vem à tona. Nesse sentido, a defesa de uma fala considerada preconceituosa por diversas minorias ocorre invocando uma liberdade que, na verdade, reage a afirmação e organização de minorias nos discursos identitários, expressão que se encontra nas guerras culturais (HUNTER, 1991) ou guerra de valores. A guerra cultural fomentada pela extrema direita quer a eliminação de tudo que seja diverso (ROCHA, 2021: 113).
Com a racionalidade olavista em circulação no debate público como reação aos avanços progressistas, faltava apenas uma liderança política como Bolsonaro que capturasse esses anseios. O mercado de ideias na política tinha uma lacuna aberta para a reação contra minorias diante do incomodo da movimentação das estruturas institucionais. O programa CQC, além de outros programas de humor, como Pânico na TV com o quadro “Bolsonabo[3]”, inscreveram as ideias de Bolsonaro no debate público, de modo que a naturalização desta circulação incluiu pessoas antes envergonhadas de assumirem posturas consideradas inadequadas no convívio social.
CQC – Custe o que custar
O programa Custe o que Custar no Brasil tinha motivação humorística de provocar lideranças políticas, colocando-as muitas vezes em posições desconfortáveis. Utilizava a estrutura do jornalismo para fazer humor com questionamento inusitados ou atitudes inesperadas (RAMOS, 2013: 26). O humor tem o efeito de humilhar minorias, mas também de encurralar os agentes sociais dominantes nos campos. Assim, o grande inimigo da autoridade é o desrespeito e a provocação pela risada (ARENDT, 2017: 124).
Bolsonaro participou de algumas matérias e quadros do programa CQC. O quadro “O povo quer saber”, de perguntas e respostas rápidas e sucintas contou com a participação do então deputado federal, em 2011. Nesta ocasião, questionado sobre como reagiria se tivesse um filho homossexual, Bolsonaro disse que isso não ocorreria, pois eles tiveram “uma boa educação”. No mesmo quadro, questionado pela cantora Preta Gil sobre como reagiria se um de seus filhos se apaixonasse por uma mulher negra, respondeu: “eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o seu”.
A fala homofóbica e racista de Bolsonaro repercutiu na opinião pública. Folha de S. Paulo[4], Estadão, TV Bandeirantes, entre outros veículos, noticiaram e debateram o assunto. Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, sugeriu processo por quebra de decoro. Diversos parlamentares reagiram. O Conselho de Ética da Câmara abriu uma representação contra o deputado.
Na semana seguinte, Bolsonaro teve mais 13 minutos no CQC para se explicar em outro quadro chamado “documento especial”. Para o apresentador Marcelo Tas, as opiniões de Bolsonaro provocaram debate sobre racismo, preconceito, violência. Ao final da exibição do quadro, Tas demonstrou insatisfação e revelou a luta de sua filha homossexual contra os preconceitos. Com receio de alguma punição no Conselho de Ética da Câmara, o deputado afirmou que o programa havia trocado a pergunta. Depois, recuou, afirmando que não ouviu a pergunta direito. Ainda assim, voltou a exprimir homofobia ao dizer que a parada gay promove maus costumes.
Todos os entrevistados pelo CQC manifestaram repulsa em graus variados pelo racismo de Bolsonaro, exceto o jornalista Guilherme Fiuza. Para ele, Bolsonaro era uma voz de direita e era importante ter “uma voz da direita por mais destrambelhada que seja”. Fiuza atualmente trabalha na rádio Jovem Pan e é um intelectual orgânico do bolsonarismo. Faltava a Fiuza em 2011 o sistema de crenças olavista e a liderança de Bolsonaro para manifestar uma opinião contundente no contexto das guerras culturais. Fiuza ainda diz na entrevista no quadro que se assustou[5] com o posicionamento antissistema de Olavo à primeira vista, mas depois o compreendeu.
Outro entrevistado foi o deputado federal Jean Wyllys, que tinha um mês de Câmara em 2011. Apesar do pouco tempo de casa, explicou que Bolsonaro o escolheu como adversário por empunhar a bandeira LGBTQIA+. A repetida violência simbólica levou Wyllys a desistir de assumir o terceiro mandato na Câmara no início do governo Bolsonaro em 2019 e mudar para fora do Brasil. A ex-deputada federal Manuela D’Ávila desistiu de concorrer ao Senado por causa das ameaças que ela e a família sofrem. O que revela que a disputa nas guerras culturais é também uma ameaça a existência para mulheres e LGBTQIA+.
Fica claro o posicionamento do CQC contra Bolsonaro, pois a intenção era expor o comportamento racista e homofóbico do deputado. Colocar um assunto na agenda pública faz parte do trabalho jornalístico de agenda da mídia em que se coloca determinado assunto como foco da atenção (MCCOMBS, 2009: 18). O agendamento da mídia, isto é, a visibilidade de temas em detrimento de outros, sugere o que se deve pensar e não como se deve pensar (AZEVEDO et al, 2004: 43).
Nesse sentido, CQC transformou Bolsonaro em notícia, pautando os veículos jornalísticos. O agendamento da mídia, contudo, se tornou agendamento da política. A fala racista e homofóbica de Bolsonaro no quadro “o povo quer saber” condenada por uma boa parcela da opinião pública gerou agendamento da mídia devido a polêmica. O programa buscou continuidade com o convite ao deputado para o quadro “documento especial” na semana seguinte. Nesse sentido, a repercussão da fala pode ser compreendido como agenda política de Bolsonaro. A exposição de Bolsonaro em enquadramentos negativos por diversos atores do campo do jornalismo parecia cumprir uma função educativa, um processo civilizador, porém, também levava sua mensagem a quem tinha pensamento semelhante.
Após ter sido eleito presidente da República, Bolsonaro permanece com o discurso racista, homofóbico e misógino. Como o cargo que ocupa tem grande interesse público para o acompanhamento do jornalismo, busca fazer o agendamento da política pautando os jornais com falas preconceituosas, acenando para sua base e promovendo outro capítulo das guerras culturais. Diferentemente de outras lideranças como Lula e Ciro Gomes que tem em suas assessorias grande preocupação com o efeito de um discurso improvisado considerado desastrado que pode riscar o capital político (BOURDIEU, 2021), Bolsonaro não se preocupa em produzir um discurso que manche sua reputação. A construção da sua imagem acontece justamente na intensidade de falas preconceituosas que na boca de outros candidatos geraria perda de capital político.
O estabelecimento do sistema de crenças olavista (ROCHA, 2021) ainda tímido em 2011 permitiu ao longo da década que o discurso de ódio de Bolsonaro e o discurso preconceituoso envergonhado dentro da opinião pública fosse expressado com coragem, sustentado pela racionalidade proveniente do marxismo cultural, politicamente correto, ideologia de gênero. Isso é colocado no senso comum com a frase “o mundo está ficando chato”, “não se pode falar mais nada”, expressões que são baseadas no combate a mudanças nas estruturas estruturadas conservadoras que ao se alterarem também mudam o modo de dominação, gerando tensões.
A crise de hegemonia a partir das jornadas de junho de 2013 que se consolidou em 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) levou o bloco de esquerda a resistir na guerra de movimentos de modo a se posicionar na defesa do sistema, isto é, da democracia liberal. As guerras culturais fazem parte de luta por mais democracia ou desdemocratização. Um olhar sobre os dois quadros produzidos pelo programa CQC no intervalo de apenas uma semana em 2011, corrobora a não aceitação da opinião pública do racismo e da homofobia, situação que mudou ao longo da década com o avanço da extrema direita.
Considerações
Os quadros do programa de humor CQC produzidos em 2011 escolhidos para este ensaio fizeram o agendamento da mídia com Bolsonaro na intenção educativa de condenar o pensamento preconceituoso do então deputado federal. Naquela ocasião, era visível o julgamento predominantemente negativo da opinião pública com comportamentos racistas e homofóbicos. Depois do estabelecimento do sistema de crenças olavista, restava o aparecimento de uma liderança política para suprir a lacuna das ideias das guerras culturais que circulam pelas extremas direitas no mundo. Marxismo cultural, politicamente correto e ideologia de gênero forneceram a racionalidade para o fim da espiral do silêncio da extrema direita no discurso anti LGBTQIA+, misógino e racista.
Referências
ARENDT, Hannah. Crises da República. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. 204 p.
AZEVEDO, Fernando. Antônio. Agendamento da política In: RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim (org). Comunicação e Política: Conceitos e Abordagens. Salvador: Editora UNESP, 2004. 578 p.
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo, 2020. 224 p.
BOURDIEU, Pierre. Sociologia geral: vol.2: habitus e campo. Curso no Collège de France (1982-1983). Petrópolis: Vozes, 2021. 460 p.
CORRÊA, Sonia. (Org). Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia. Rio de Janeiro: UFRJ. Observatório de Sexualidade e Política e Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, 2022. 72p.
HUNTER, James Davison. Culture Wars: the struggle to define America. Making sense of the battles over the family, art, education, law and politics. United States of America. New York: Basic Books, 1991. 401p.
MCCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: A mídia e a opinião pública. Petrópolis: Vozes, 2009. 238 p.
NOELLE-NEUMAN, Elisabeth. A Espiral do Silêncio: Opinião Pública: nosso tecido social. Florianópolis: Novos Estudos, 2017. 342 p.
RAMOS, Daniela Atalla da Silva. Jornalismo, Humor e Política: a cobertura das eleições presidenciais pelo CQC e sua contribuição para o debate público. São Paulo: Dissertação de Mestrado – PUCSP, 2013.
ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um brasil pós-político. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021. 459 p.
[1] Jornalista. Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP. Especialista em Ciência Política pela FESPSP. Pesquisador do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC-SP. Editor assistente na Revista Aurora (publicação eletrônica de arte, mídia e política).
[2] Atuando como deputado federal desde 1991, Bolsonaro sempre esteve no baixo clero, posicionado como dominado dentro do campo político. Apresentou 171 projetos de lei, de lei complementar, de decreto legislativo e propostas de emenda à Constituição (PECs) com aprovação de apenas dois projetos: um estendeu isenção de Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) em bens de informática e outro autorizava a utilização da fosfoetanolamina sintética, a chamada pílula do câncer. Sua primeira emenda caracterizava a impressão do voto nas urnas eletrônicas. Nas quatro vezes que tentou ser presidente da Câmara dos Deputados, obteve menos de dez votos – em todas as ocasiões. Em fevereiro de 2005, concorreu e angariou dois votos; em outubro de 2005, teve zero votos (sendo que nem ele votou em si); no ano de 2010, conseguiu nove votos; no ano de 2017, registrou quatro votos. Em 2018, foi eleito presidente da República.
[3] No quadro exibido em 2017, o humorista Marvio Lúcio, conhecido como “Carioca” interpretava um sósia claramente autoritário de Bolsonaro que humilhava as pessoas que faziam perguntas. A gravação era feita na rua em tom de campanha, com atores milicianos atrás de Bolsonabo, punindo as pessoas de acordo com o desejo do líder. O principal alvo eram as mulheres, com piadas machistas e homossexuais com piadas homofóbicas. Em 2020, Carioca retornou ao personagem entrevistando Bolsonaro para o programa Domingo Espetacular da Rede Record. Na ocasião, foi com o Bolsonaro ao espaço reservado à imprensa no Palácio da Alvorada onde fez gestos de “banana” para os repórteres, respondendo pelo presidente e atacando verbalmente os jornalistas. Questionado, se defendeu explicando que seu personagem requeria aquele comportamento.
[4] <Folha de S.Paulo> https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3003201101.htm
[5] https://m.facebook.com/jovempannews/videos/fiuza-olavo-era-um-pensador-e-s%C3%B3-%C3%A9-um-pensador-quem-tem-originalidade/310583714454492/?refsrc=deprecated&locale2=ne_NP&_rdr