Bo Burnham e a política no humor

Luis Henrique Antunes*

O especial ‘’Inside’’, de Bo Bornham, disponível na Netflix, toca em diversas questões existências e políticas. O próprio especial foi produzido durante o período de lockdown no ano de 2020/2021, quando a impossibilidade de se apresentar ao vivo, em clubes de comédia era a norma. Bo então decidiu produzir o especial dentro de um único quarto, utilizando apenas luzes, uma câmera e qualquer outro objeto que estivesse disponível em sua casa. Tendo ideia do contexto em que a obra foi produzida, seguiremos com a análise de alguns quadros do especial.

O primeiro quadro interessante de se analisar chama ‘’How the world works’’, no qual Bo transforma uma de suas mãos em um puppet de meia, chamado Socko, e os dois então cantam uma música que pretende explicar o funcionamento do mundo. Exemplo: ‘’A narrativa simples ensinada em todas as aulas de história / É comprovadamente falsa e pedagogicamente classicista / Você não sabe? O mundo é feito de sangue! E genocídio e exploração! / A rede global de capital funciona essencialmente / Para separar o trabalhador dos meios de produção’’. Nesse trecho, Socko, baseado em Marx, deixa explicito que a classe influência na maneira que o conhecimento é produzido e reproduzido. Ou seja, a história é escrita e ensinada pela classe que possui maior riqueza e poder. Mais ainda, deter os meios de produção dos livros pedagógicos que ‘’ensinam’’ sobre a história é uma consequência dessa concentração de poder dos ‘’vitoriosos’’. Tal ideia vai ao encontro com o autor Paulo Freire, que defende que a educação nunca é neutra, e sim, que ela ou perpetua sistemas opressores, ou leva a uma mudança radical através da prática da liberdade.

Cabe ainda ressaltar que Socko faz referência a ideia de Marx de que, no mundo industrial, os trabalhadores são separados dos meios de produção, ou seja, eles são alienados das formas de produção, desempenhando apenas uma parte manual e repetitiva do processo de produção.

Em sequência, Socko continua explicando como o mundo funciona: ‘’ Propriedade privada é inerentemente roubo / E fascistas neoliberais estão destruindo a esquerda / E cada político, cada policial na rua / Protege os interesses da elite corporativa pedófila’’.  Aqui Socko faz referência ao filósofo Jean-Jacques Rousseau, que acreditava que o estado de natureza do homem seria pacífico. No entanto, ele deixa claro que tal estado foi rompido quando o primeiro homem, de forma deliberada, decidiu delimitar um pedaço de terra e fez com que outros homens achassem que ele era o dono daquele espaço. É justamente essa ideia que funda a sociedade civil baseada na propriedade privada, e que, séculos para frente, seria o motivo de guerras, genocídios e assassinatos. Essa mesma ideia é utilizada por Marx e Engels cerca de um século depois, quando eles demonstram que a grande maioria das propriedades já eram controladas pela burguesia, e que para todas as outras classes, restaria apenas a possibilidade de aluguel, não sendo jamais proprietário de algum imóvel.  

Outro quadro interessante é quando Bo se encontra deitado no chão, coberto e com um microfone posicionado junto de seu travesseiro. Nessa cena, Bo diz o seguinte: ‘’Talvez, sabe, permitir que corporações de mídia digital gigantescas explorassem o drama neuroquímico das nossas crianças por lucro, talvez, sabe, tenha sido uma péssima decisão nossa’’. Aqui Bo tenta demonstrar como as empresas de tecnologia foram capazes de utilizar o nosso próprio cérebro contra nós mesmos, tornando-nos viciados em usar nossos aparelhos smart, enquanto eles extraem dados e os transformam em lucro. Ele critica abertamente o funcionamento das plataformas e redes sociais que operam de forma colonizadora da nossa subjetividade, buscando aumentar seus lucros e controles sobre os seus usuários. Em especial, o comediante se sente profundamente receoso com a facilidade que a sociedade aceitou que crianças são exploradas por essas técnicas desde a mais tenra infância.

No último quadro a ser analisado, Bo produz um vídeo sobre ‘’Sexting’’, uma forma de ser relacionar via virtual. O trecho diz: ‘’ Sexting (uau) / Não é sexo, é a segunda melhor coisa / Sexting / Sim, sim, AT&T’’. Nessa música é possível perceber que o sexo e o romance são empacotados na forma de um produto digital que está ligado ao sistema de cliques e conteúdos da internet. O que Bo tenta demonstrar com essa música é que nem o sexo e o romance escapam da logica de se tornarem commodities na era do capitalismo digital. Mais ainda, ele demonstra que nossas afetividades são utilizadas para nos manter grudados com nossos dispositivos smart, criando assim mais dados e mais lucro para as empresas. Essa ideia vai de encontro com o autor Alain Bidou, que diz o seguinte: ‘’Trata-se do amor com seguro total: você vai ter o amor, mas terá tudo tão bem planejado, tão bem e previamente selecionado seu parceiro, teclando na internet – terá, obviamente, foto, gostos detalhados, data de nascimento, signo etc. -, que, ao termo dessa imensa combinação, poderá concluir: ‘’Com este vai dar certo, não corro risco!’’.

Ao fim do especial, Bo deixa claro que o mundo não está acabando. Ele já acabou. Ele não busca mais sinais de esperança dentro desse sistema, uma vez que é exatamente esse sistema que cria os problemas que ele explorou ao longo do especial. O especial termina com Bo deixando o quarto que ficou preso ao longo de todo especial, e nos é mostrado Bo do lado de fora, olhando para cima, com uma face de terror e medo.

REFERÊNCIAS

BADIOU, Alain; TRUONG, Nicolas. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.

NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT, Francisco C (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2011. p. 143-184.


* Graduado em Psicologia pela Puc-Campinas e mestrando em Ciências Sociais pela Puc-São Paulo.

Publicado por Neamp

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