A imagem em destaque é uma escultura do coletivo artístico e ativista Indecline.
Fabrício Augusto Antonio Amorim1
A discussão sobre a instauração de um processo de impeachment tornou-se lugar comum no Brasil depois da destituição do presidente da República Fernando Collor de Mello, em 1992. Desde essa época, o recurso passa a ser redigido de maneira habitual por partidos políticos e cidadãos. Sob a Constituição de 1988, tivemos 243 solicitações de impedimento protocoladas na Câmara dos Deputados até junho de 2020, o que revela a banalização de um instrumento de deposição que deveria ser acionado em casos excepcionais. Nos últimos 30 anos, seis presidentes foram eleitos e dois mandatos foram interrompidos no Brasil. Por duas vezes construiu-se ambiente para a tempestade política perfeita em que prospera um impeachment: escândalos políticos; baixa popularidade do presidente; problemas econômicos; apoio das classes dominantes e outros atores sociais; pressão midiática.
A ideia de impeachment não nasceu em nossas terras. O impeachment tem a primeira documentação registrada na Inglaterra no século XIV, como meio pelo qual o Parlamento poderia processar titulares de cargos públicos. No Parlamento, o trâmite do impeachment começava na Câmara dos Comuns que atuava como tribunal de acusação, enquanto a Câmara Alta, ou Câmara dos Lordes julgava os ministros do rei. A pena poderia ser uma multa, a perda do cargo, a prisão e até mesmo a morte. Existia, contudo, a chance de se defender das acusações. O primeiro impeachment registrado no Parlamento inglês foi em 1376 no caso do Lorde William Latimer. O nobre foi acusado de corrupção. A última ocorrência de impeachment ocorreu contra o Lord Melville, em 1806.
A primeira discussão sobre impeachment nos Estados Unidos ocorre nos artigos federalistas. Os federalistas assumem que a inspiração para dar à Câmara dos Representantes a possibilidade de acusar e ao Senado de julgar veio do modelo inglês, no qual a Câmara dos Comuns propunha o impeachment e a Câmara dos Lordes julgava. O impeachment na Inglaterra era uma rédea que limitava o poder absoluto. A novidade é a presença do presidente da Suprema Corte dirigindo o julgamento no Senado e a sentença de um impeachment substituída pela aplicação da pena política. Quando os Estados Unidos admitiram o impeachment na redação de sua Constituição, a Inglaterra abandonava o recurso, passando a adotar a responsabilização do Gabinete por meio da substituição dos Ministros. As críticas ao impeachment nos Estados Unidos vieram do federalista Hamilton e do francês Tocqueville.
Tocqueville2 alerta que um aumento do número de processos de impeachment nos Estados Unidos revelaria a “corrosão” daquela sociedade e que poderia ser utilizado de modo abusivo em uma acusação. Para ele, as normas são vagas. Não há clareza na definição do crime, o que acarreta uma possibilidade “ilimitada” de acusações tornando o recurso “obscuro”. Hamilton3 explica que o julgamento de um impeachment associado com partidos políticos podia absorver as hostilidades e interesses parciais, provocando as emoções dos indivíduos e dividindo a sociedade.
A adoção do impeachment no Brasil copiou o modelo inglês medieval durante a vigência da Monarquia e o modelo norte-americano após a proclamação da República. O crime de responsabilidade está inscrito em todas as Constituições do Brasil, inclusive nas cartas autoritárias de 1937 e 1967. O instrumento de interrupção de uma função pública foi estabelecido na administração centralizada da monarquia e manteve-se nos períodos republicanos. O seu acionamento sempre inspirou cautela e, por conta disso, apareceu como ameaça real a um mandato uma única vez na história do país em 19544 na votação do impeachment5 de Vargas que não progrediu.
O impeachment retornou ao debate público na década de 1990, quando houve a aceitação do processo que destituiu o presidente Fernando Collor de Mello. A presidenta Dilma Rousseff (PT) foi quem mais teve impeachments protocolados na Câmara dos Deputados. A petista acumulou 68 documentos. Jair Bolsonaro (sem partido) tem 48 pedidos de impeachment em um ano e seis meses à frente da presidência da República. Lula, em dois mandatos, teve 37 pedidos de impeachment; Michel Temer (MDB) teve 31 pedidos de impeachment; Fernando Collor de Mello teve 30 pedidos de impeachment; Fernando Henrique Cardoso (PSDB) teve 25 pedidos de impeachment; Itamar Franco teve quatro pedidos de impeachment. Todos os números foram contabilizados a partir de conteúdos informados pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
O processo de impeachment tem início com o recebimento do documento pela Câmara dos Deputados a partir da decisão monocrática6 do seu presidente que entende haver enquadramento do presidente da República em crime de responsabilidade. O processo pode avançar com dois terços dos votos das duas casas do Congresso com o Senado funcionando como corte julgadora. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) comanda os trâmites do processo de impeachment no Senado.
A aceitação do impeachment do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), depende da decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Bolsonaro acumula em um ano e meio mais pedidos de impeachment que todos os presidentes da República depois da redemocratização. Foram seis pedidos de impeachment entre abril de 2019 e fevereiro de 2020, e 42 pedidos de impeachment entre março e junho de 20207. A maioria dessas solicitações de impeachment apontam crime de responsabilidade por ataques a democracia: 24 documentos mencionam atos contra o STF; 20 documentos mencionam atitudes inadequadas durante a pandemia de covid 19; 14 mencionam interferências na PF – Sérgio Moro; 6 menções diversas.
A corrupção foi a justificativa mais comum nos pedidos de impeachment contra FHC, Lula, Dilma e Temer. Os ataques a democracia são as maiores alegações contra o atual governo. De fato, Bolsonaro pode ser enquadrado em crime de responsabilidade por ter apoiado atos contra o poder judiciário; por interferência na polícia federal e pelo comportamento incompatível com o cargo. O presidente teve que dar um passo atrás do seu fundamentalismo político8 para afastar a possibilidade de impeachment: dialogou, negociou cargos com o centrão, aproximou-se de entidades patronais e manteve o alinhamento neoliberal que dá fôlego ao seu governo na medida em que o mercado permanece com seus ganhos intocados.
O impeachment depende do elemento jurídico inscrito na Lei 1.079/50. Bolsonaro preenche diversos requisitos inscritos na lei. Mas como o julgamento também é político, o impeachment se torna instrumento de lutas. O processo que teve como alvo a presidenta Dilma Rousseff (PT) não apresentou o elemento jurídico. O impeachment da petista foi caracterizado como golpe parlamentar pela falta de crime de responsabilidade. Como só houve luta política, o instrumento do impeachment foi corrompido, o que abre precedente para a absorção de interesses parciais, como ressaltou Hamilton; tal qual acusações abusivas e possibilidades ilimitadas, como alertou Tocqueville.
O impeachment deveria surgir como remédio constitucional para destituir os abusos de um presidente da República. Pode, no entanto, tornar-se instrumento partidário banalizado nas mãos do partido derrotado nas urnas ou de um grupo político na luta política de construção de enquadramento do presidente mesmo sem crime de responsabilidade. O conteúdo de muitos documentos requerendo impeachment de um presidente da República no Brasil demonstram como o impeachment no Brasil inserido nas lutas políticas não é acionado como botão de emergência, mas compreendido como arma simbólica em que o poder simbólico está em jogo: a redução do capital político do indivíduo acusado até a tentativa de destituição.
Um processo de impeachment é traumático, entretanto, aparece como último recurso à evitar o poder absoluto ou a corrosão das instituições do Estado. O fundamentalismo político de Bolsonaro e o consequente posicionamento antissistema gera um atrito com outros poderes em que o impeachment é a última saída para salvar a democracia. Em uma tempestade perfeita para um impeachment, um cenário econômico em queda e a aprovação do governo abaixo de 15% criam um ambiente propício para um impeachment prosperar. Nesse contexto, dificilmente o poder simbólico esvaziado pode ser recuperado. Bolsonaro, contudo, mantém apoio de 32% da população segundo o Datafolha9. O pacto neoliberal conservador, a presença de militares no governo e os acordos com o centrão dificultam a probabilidade do impeachment de Bolsonaro em curto prazo. Nada que as lutas políticas não possam mudar conforme o presidente cometa ainda mais crimes de responsabilidade.
NOTAS:
1 Doutorando e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP)
2 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: Leis e Costumes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 560 p.
3 MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os Artigos Federalistas: 1787-1788. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 534 p.
4 LEI Nº 1.079, DE 10 DE ABRIL DE 1950. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1079-10-abril-1950-363423-normaatualizada pl.html >. Acesso em: 05/07/2020
5 A lei 1.079/19505 vigente atualmente no Brasil foi aprovada após a confirmação da candidatura de Getúlio Vargas à presidência da República. A legislação que caracteriza os crimes de responsabilidade permite a denúncia de impeachment contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador-Geral da República. Legislações estaduais e municipais regulam o impeachment em suas jurisdições.
6 Um recurso inscrito no parágrafo 3º do artigo 218 do regimento interno daquela casa permite apresentar recurso ao plenário em caso de indeferimento do processo de impeachment pelo presidente da Câmara dos Deputados, bastando maioria simples para sua admissão. O recurso, contudo, depende de alguma deliberação, já que o presidente da Câmara pode postergar a decisão. Não existe prazo regimental para despacho de um documento de pedido de impeachment.
7 Todas as informações foram solicitadas pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
8 O uso do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e da passagem bíblica “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32) em diversos posts em redes sociais constituem as bases da prática do fundamentalismo político pelo presidente Jair Bolsonaro. Compreende-se fundamentalismo político como a assimilação de que há uma verdade revelada que aproxima em quem nela acredita, reforçando a crença na salvação e na existência de uma luta contra o mal que anula a possibilidade de debate.
9 DATAFOLHA, 26 DE JUNHO DE 2020. Bolsonaro é reprovado por 44% . Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2020/06/1988765-bolsonaro-e-reprovado-por 44.shtml>