Silvana Martinho1
Toni D’Agostinho2
Duas colunas da página do jornal, dimensão na qual é aplicada a charge diária, bastam para inserir o leitor no debate político cotidiano por meio do discurso imagético; poucos centímetros de papel são simbólica e esteticamente agigantados, figurando cenário, personagens e dramas das desigualdades e incongruências nacionais. Nessa dinâmica, o leitor também desempenha seu papel na cena proposta pelo autor da representação gráfica, que, circundada pelas demais matérias caras ao jornalismo, abandonam o caráter ilustrativo, a serviço tão somente de uma linguagem escrita hegemônica, para estabelecer discurso autônomo em campo próprio. 9,6 centímetros, apreendidos pelo humor gráfico do periódico, impõem, portanto, uma interação visceral entre obra, espectador e problemáticas do país.
Para além das supracitadas colunas do jornal, as charges de Angeli e Laerte ganharam a principal via da cidade de São Paulo, a avenida Paulista, com a exposição “Direito do Avesso/Avesso do Direito”; organizada pela União Geral dos Trabalhadores, fez parte da 5ª edição da exposição de maio na Paulista, que celebra o 1º de maio, Dia Internacional do Trabalhador. Foram trinta peças gráficas de humor com temas relacionados às questões dos Direitos Humanos, apresentadas ao longo de um quilômetro, desde a esquina da Rua Augusta até a Alameda Campinas, tornando-se a maior exposição ao ar livre da América Latina.
Inusitadas relações entre as charges e transeuntes, de súbito, pululam, quando do emaranhado entre peças satíricas e arquitetura paulistana; se, no jornal, o humor gráfico está emoldurado pelas colunas e notícias, na via pública a moldura ganha o atributo vivo do corpo urbano. Críticas silenciosas e expressivas com poucos traços e um quadro atribuem valores, discutem ações e abrem campos de reflexões, instigando, para aqueles que circulam na rapidez necessária da dinâmica da cidade, o sentimento do contrário de Pirandello3.
Os imponderáveis que figuram no inventário das tantas peculiaridades de uma grande cidade são por demais surpreendentes: sendo a Avenida Paulista uma via de manifestações políticas, no domingo, 26 de maio de 2019, reuniu movimentos que atuaram na mobilização em torno do processo de Impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff para celebrar um ato pró-governo Bolsonaro4.
O contexto da exposição dos renomados cartunistas5 não previu essa manifestação com pautas opostas aos Direitos Humanos; tampouco os artistas poderiam supor tal embate entre a imagem que satiriza a ação autoritária e o clamor de uns tantos populares que demandam, aos brados, autoritarismo institucional. O resultado foi uma coincidência de contrastes como poucas vezes se viu na outrora terra dos barões do café.
Porém, em vez da repulsa, tal qual água e óleo contidos num mesmo recipiente, evidenciando duas substâncias que não se misturam, a sátira e o satirizado formaram um terceiro elemento, capturado em imagens que viralizaram nas redes sociais: a cidade em ato que satiriza a si mesma.
Duas foram as imagens selecionadas para evidenciar esse encontro, ou desencontro, entre charge, cidade e transeuntes.

A primeira transformou um manifestante em agente da fala, cujo flagrante da espacialidade lhe rendeu a protagonia – que seria da personagem de Laerte: “Você está cercado de ignorantes! Saia desse livro com as mãos para cima”. Com isso, há uma nova qualidade crítica da peça humorística: para além de representações de indivíduos que não valorizam e condenam o conhecimento, a alça do balão de fala une o desenho à carne e à pedra paulistanas; personifica-se o alvo da crítica, tornando a representação da charge e da fotografia, que seria, a princípio, uma paródia da própria vida, em um evento no qual os limites entre ficção e realidade perderam a capacidade de distinguir fábula e comportamento social, inaugurando um novo inventário de absurdidade palpável.

A harmoniosa interação entre charge, manifestantes, em sua maioria brancos, e a verticalidade da cidade, na segunda imagem, permite uma releitura da composição que, a partir de um dos símbolos da República, abre possibilidades para questionar um patriotismo às avessas, frente às desigualdades da sociedade brasileira, escancarando as ambiguidades e idiossincrasias de um grupo que, ao ocupar as ruas, enrolados em bandeiras e camisas verde e amarelas, defendem pautas que podem aumentar o abismo social que existe no país – abordado nos traços de Angeli. A personagem negra e em situação de rua, que rasga a bandeira para se proteger do frio, caminha em sentido perpendicular e oposto à turba – portanto, jamais irão se esbarrar; não coincidirão no vértice. Além da orientação espacial, seus interesses e necessidades, assim como suas posições no estrato social jamais encontrarão o uníssono.
Nesse evento específico, a política e a arquitetura foram co-autores de significados que transcenderam, ainda que pela fugacidade de um domingo, o pulso criador inicial – o que só evidencia a grandeza dos artistas, cujas obras são dignas de impor sua presença ante uma São Paulo que esganiçou contra universidades públicas, cotas raciais, instituições democráticas e arte.
NOTAS:
1 Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisadora NEAMP e idealizadora do Núcleo de Pesquisas Observatório de Humor e Política.
2 Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, cartunista e idealizadora do Núcleo de Pesquisas Observatório de Humor e Política.
3 PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. Trad. Dion Davi Macedo. SP. Experimento. 1996.
4 Ativistas Independentes; Direita São Paulo e Patriotas Lobo Brasil são favoráveis a pautas como: defesa da Reforma da Previdência; defesa do Pacote anti-crime do ministro Sérgio Moro; apoio à Lava Jato; votação nominal na MP da Reforma administrativa; defesa de medidas de Bolsonaro como contingenciamento de gastos e decreto de armas.
5 A parceria de Angeli e Laerte não é nova, ao lado de Glauco, criaram importantes produções de histórias em quadrinhos: Chiclete com Banana, Geraldão, a famosa série Los três amigos. Em 2017, retomaram a parceria dos quadrinhos e selecionaram dez artistas que, durante duas semanas, reuniram-se onde, atualmente, funciona o Instituto Hilda Hilst – em um trabalho coletivo, como um experimento livre, que insere e mistura diferentes linguagens como poesia, histórias em quadrinhos, prosa e fotografia.