A lama fotogênica

Cristina Maranhão*

Quando ocorrem tragédias (podendo ser de caráter natural ou não), como esta de Brumadinho em Minas Gerais, as mídias são nossa fonte de informação. Não nos deslocaremos até a tragédia e assim, nossa percepção dos acontecimentos são mediadas. Na atualidade esta mediação é feita por diversos canais: televisão, jornal impresso, articuladores, colunistas e a internet. Este último com uma grande vantagem de difusão e acesso. E encontramos em todas estas mediações o uso de imagens para construir a narrativa da tragédia.

Proponho neste artigo fazer uma pequena reflexão das fotografias veiculadas e refletir sobre o universo imagético tendo como premissa as imagens destes momentos trágicos. Esta reflexão não será focalizada em um único fotógrafo, ou meio de informação. As escolhas das fotografias a serem analisadas se deu a partir do conjunto de imagens encontradas pela busca na internet através do navegador Google em resposta a seguinte frase: “fotografia da tragédia de Brumadinho”. E assim, partiremos deste resultado para a construção do nosso argumento.

No ano de 2001, o mundo se assombrou com a transmissão ao vivo do que seria um divisor de águas para o mundo pós-segunda guerra. Os aviões indo de encontro as chamadas Torres Gêmeas nos Estados Unidos da América alteraram as relações geopolíticas estabelecidas. Dois anos depois chegava ao Brasil o livro da jornalista e ensaísta Susan Sontag, Diante da Dor dos Outros (2003), este que a partir do acontecimento argumentava sobre as imagens das guerras atuais e seus desdobramentos. Neste livro, a autora citando as imagens do genocídio armênio retoma acontecimentos terríveis da humanidade e argumenta que imagens de dor e sofrimento deveriam carregar suas especificidades históricas tornando-se assim uma memória coletiva e buscando garantir que os fatos não ocorressem novamente. Assim, propõe que estas sejam imagens comprobatórias e mostra como as imagens de conflitos devem conter legendas explicativas para que estas não sejam assimiladas ou esquecidas, e possam contribuir para que novos fatos com naturezas parecidas não tornem a ocorrer.

A potência da fotografia de tornar-se prova cabal de que algo existiu é intrínseca à técnica e ao período em que esta surgiu. Para o senso comum, quando uma fotografia de algo aparece é vista como a verdade estampada na retina do observador. Na maioria dos casos não é levado em conta o meio que esta imagem está veiculada, nem as escolhas do fotógrafo. A subjetividade do fotógrafo na relação imagem/verdade não é reconhecida, e assim, as imagens recebem uma carga simbólica de portadora do real. E de fato elas são, porém é necessário ir além deste real proposto, ou possível. Acredito que a fotografia carrega diversas possibilidades de construção de realidades múltiplas.

Ao colocar na busca “fotografia da tragédia de Brumadinho”, as imagens que aparecem são em sua maioria imagens panorâmicas da lama. É difícil, neste momento em que estamos no meio do processo de busca de vítimas, reconhecer que estas imagens não nos dizem nada. Em conjunto elas são apenas imagens vazias, se não soubermos do contexto estas não nos sensibilizam e passam despercebidas. Para esta confirmação colocamos também na busca outras duas tragédias com deslocamento de terra e/ou material oriundo de minas de ferro, o caso de Mariana, em 2015, e o deslizamento de terra na cidade fluminense de Nova Friburgo, em 2011. O que não foi uma surpresa as imagens eram todas iguais nas questões simbólicas, na construção pictórica, no tema a ser focalizados pelo fotógrafo e a única alteração é a tonalidade do mar de lama avermelhada para o mar de lama do barranco, e não tendo assim, muita distinção entre o caso Mariana, Brumadinho e Friburgo.

Estas afirmações são somente para as questões imagéticas, não cabe ao discurso dos meios. E é importante realçar que pela primeira vez o discurso midiático se alterou, construindo uma relação entre a busca por lucro das empresas e o baixo custo da conservação do armazenamento dos rejeitos tóxicos das mineradoras. Esta construção de discurso não esteve presente no caso de Mariana há três anos atrás. Por que as imagens não acompanham esta relação discursiva e da agenda dos meios e constroem repetições em forma de clichês-imagéticos? Esta pergunta venho já há alguns anos pesquisando e acredito relaciona-se com o que vivenciamos hoje na nossa construção social. Ou seja, as imagens que compartilhamos, construímos e reproduzimos estão envolvidas numa lógica do espetáculo, como nos apresentou Guy Debord (1997). As relações sociais tornaram-se coisas que devemos consumir, as imagens nesta sociedade passam a ter uma relação de mercadoria e alteram o sentido subjetivo característico desta forma de expressão para um sentido vazio da reprodução excessiva. Assim, as imagens destas tragédias são esvaziadas de subjetividade, passam a reproduzir o que lhe é programado para ser uma imagem de tragédia.

Outro autor que ajuda a pensar esta questão é Frédéric Gros que, em seu livro Estado de Violência: ensaio sobre o fim da guerra (2009) apresenta uma nova relação política e econômica global que tem bases nas mudanças econômicas a partir da globalização, e apresenta a ideia de que estas mudanças também afetam a relação imagética. As agências de fotojornalismo passaram a determinar o olhar para como as imagens do mundo devem ser, e esta lógica da globalização proporcionou que as imagens perdessem suas especificidades tão caras a Susan Sontag e as imagens comprobatórias.

No caso de Mariana, as imagens da tragédia não levaram a ações como as que hoje começam a ser discutidas sobre como as barragens das mineradoras e multinacionais são construídas no país. Sendo necessário um novo rompimento com centenas de mortes e famílias destruídas, o impacto ambiental de mais um rio morto para que esta discussão entrasse em pauta. E também não foram as imagens de Brumadinho com seus bichos agonizando presos na lama, nem as imagens dos bombeiros rastejantes num rio de tóxico e espesso ou mesmo os cadáveres içados pelos militares que fizeram as mídias e o poder público mudar o discurso e exigir o fim deste tipo de prática criminosa. Foram as relações econômicas do pregão da bolsa de valores onde as ações da Vale despencaram e os bilhões que foram retidos para, o que chamam, de doação às famílias devastadas.

Infelizmente estas fotografias de tragédias não trazem mais a força e a potência transformadora existente na imagem, foram assimiladas nas relações espetaculares e reverberam meramente clichês. A tragédia, ou melhor, o crime ocorrido em Mariana e em Brumadinho reproduziu imagens vazias que não representam a realidade do ocorrido.

*Fotógrafa, doutora em ciências sociais pela PUC-SP e pesquisadora do Núcleo de Arte Mídia e Política da PUC-SP (Neamp).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Cantraponto, Rio de Janeiro. 1997.

GROS, Frédréric. Estados de Violência, ensaio sobre o fim da guerra. Ideias e letras. São Paulo, 2009.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Companhia das Letras, 2003.

Publicado por Neamp

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