Comunicação apresentada em 17/08/04, na XII ª Semana de Ciências Sociais da PUC-SP/ 2004 no Grupo de Trabalho: Linguagens e estéticas transversais.
Syntia Pereira Alves*
Lady Macbeth, personagem de William Shakespeare em Macbeth, é pensada, via de regra, como uma coadjuvante da trama onde o súdito, Macbeth, se torna conde e assassina o rei para obter-lhe a coroa. Até o fato de Lady levar o nome do marido, ser a Senhora Macbeth, pode ser pensada como uma prova de seu papel secundário, ela seria apenas a esposa de Macbeth. Mas Shakespeare pode também ter dado à ela uma outra parte de Macbeth, ambos se complementando, e a parte que fica para esta senhora não é simplesmente o da Eva que oferece a maçã em forma de punhal ao Adão Macbeth. Lady Macbeth é, sem dúvida, uma personagem poderosa, a força que cria a ação trágica da peça.
O poder de Lady Macbeth não está no fato dela ter se tornado uma rainha, uma mulher politicamente poderosa, mas está no fato dela, num primeiro momento já fugir dos estereótipos burgueses onde as mulheres são cristalizadas: Lady Macbeth não é nem a mulher assexuada, mãe, símbolo do bem e nem a mulher diabólica, pecadora que atrai os homens para o submundo onde ela vive. Ambos os papéis são de mulheres submissas e em nenhum destes lugares se encaixa a personagem, que é uma heroína, uma guerreira, uma personagem através da qual Shakespeare mostrou reconhecer as energias e aspirações femininas em conflito com o isolamento que se esperava que elas tivessem em uma época ainda muito marcada por masculinos.
Mulheres poderosas são insuportáveis. Mulheres que se interessam pelo mundo masculino e se mostram racionais e não passionais são extremamente insuportáveis. Uma mulher como a personagem Lady Macbeth, que se mostra capaz de todos os atos para obter o que deseja, que manipula seu marido induzindo-o a matar pelo poder e trono do reino, Lady não usa seu poder agindo, matando, guerreando ou em qualquer ação da esfera política. Lady Macbeth é a personagem da peça que pensa e induz a ação, que utiliza seu poder e seu conhecimento sobre o marido para manipulá-lo e guia-lo a fazer suas vontades, é ela quem não se conforma por estar numa posição que desagrada. O amor que existe em Lady Macbeth é pelo poder, que no decorrer da peça também invade seu marido.
Numa concepção moderna de política como forma de assegurar o bem comum, medidas violentas são consideradas como monstruosas, a não ser que a violência seja usada como medida punitiva aos infratores ou inimigos do estado e da sociedade. Isso certamente caracteriza nossa personagem como uma assassina fria e a descaracteriza como uma agente da política que utiliza seu poder para alcançar seus desejos. Mas, pensando como Foucault, a política nasce quando há conflito, o que aniquila a idéia de condutas isentas de interesses pessoais ou as ações inocentemente voltadas para o bem comum. A política surge quando é instaurado o poder e quando este poder instaurado não admite contestação. Poder é impor sua vontade acima da vontade dos outros, tornando a política algo insano e sem regras. Lady Macbeth agiu politicamente, conquistou o seu poder, o impôs sobre a vida do rei sem pensar em moralidades ou um bem que não fosse o seu..
Se Macbeth é o protagonista da peça, é Lady Macbeth quem inicia a ação, é ela quem cria a trama, quem arma a ação política e ressalta o caráter amoral, mostrando mais vontade de ocupar o trono do que seu marido. Enquanto Macbeth vive o conflito de valores ambíguos e morais, Lady Macbeth vem como expressão trágica da tensão entre o velho e o novo, aquele que almeja e luta pelo poder. A nossa personagem carrega uma amoralidade política entendida por Maquiavel como um dos meios de se tornar um príncipe, ou seja, fazendo uso da perversidade, meios criminosos, sem problemas em serem contrários às leis humanas e divinas.
Muito dos atos de Lady Macbeth seriam legitimados por Maquiavel, pois ela soube aplicar muito do que este disse, como a conquista do poder com a matança de concidadãos, a traição de amigos, a falta de fé, piedade e religião. Lady Macbeth agiu desta maneira, como disse Maquiavel, “mesmo que não possa chamar isso tudo de valoroso”. Se Maquiavel afirmava que um príncipe devia aprender a ser mau, Lady Macbeth sabia disso muito antes de se tornar rainha e fez uso da maldade para conseguir seu objetivo.
Lady Macbeth é o vetor de força da peça, é ela quem age por criar toda a situação, que articula o mal que lhe trará o bem desejado. Para Harold Bloom, o casal Macbeth nada tem de demoníaco, como pode parecer por todas as mortes e poder que eles almejam, e segundo Bloom, nos identificamos com eles até em seus atos aterrorizante, nos identificamos com Lady Macbeth por sua pura vontade que faz o mal que desejamos parecer um bem. Há um pouco de Lady Macbeth em cada um de nós, porém nossa moral não nos permite admitir.
Os personagens shakespeareanos trágicos têm a moral do guerreiro em oposição a do escravos, pois não se mostram ressentidos com a vida nem com seus infortúnios, mas dizem Sim a tudo o que lhes vem como um “dizer Sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo o que é estranho e questionável na existência mesmo… Não há que desconsiderar nada do que existe, nada é dispensável”, como pensou Nietzsche. Lady Macbeth não desconsiderou nada, abraçou todas as possibilidades
Nem a beleza eterna das deusas ou o poder demoníaco das bruxas pode ser descartados ou senhores totais de uma personagem feminina, elas têm poder principalmente para transitar de um pólo a outro. Lady Macbeth soube ser esposa e estrategista ao mesmo tempo, se valendo de todas as possibilidades. As articulações racionais não são na peça uma especificidade masculina e nem a mulher da peça é carregada de emoção ou tem suas ações guiadas pelo marido. Lady é a cabeça pensante da peça, fato que a tira da borda da peça levando-a para o centro da ação, ao mesmo tempo ela é racional por calcular todo o assassinato do rei, é passional em sua ânsia pelo poder. Como os personagens de Shakespeare vão além do bem e do mal, estes espelham as artimanhas políticas que também desconhecem regras.
Ao final da peça tanto Macbeth quanto Lady são eliminados, porém, em nenhum momento se vê a redenção de nenhum dos dois personagens. Se o bem volta a reinar na política, isso não é colocado como o único meio dela ou seu fim; por não ser estática e nem haver uma moral na política, o mesmo mal que destrói é aquele que gerará o bem. A reflexão de bem e mal na conclusão da trama não fica por conta do casal Macbeth.
E, aqueles que pensam que as mulheres, assim como Lady Macbeth, são as eternas pacifistas e mães ou as criaturas simplesmente más pelos seus atos e intenções, certamente acreditam no que Nietzsche chamou de pretensiosa mentira da civilização em oposição a verdadeira natureza humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOOM, Harold – Shakespeare: a invenção do humano – Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
CHAIA, Miguel – “A natureza política de Shakespeare e Maquiavel”, in: Revista de Estudos Avançados (9) 23, 1995, São Paulo, Ed. Ediusp.
NIETZSCHE, Friendrich – Ecce Homo – Como alguém se torna o que é, 2003, São Paulo, Cia das Letras.
SHAKESPEARE, Willian – Macbeth, Ed. Ediouro, Rio de Janeiro, 1954.
*Syntia Pereira Alves – mestranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, e membra do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política), Departamento de Política, Faculdade de Ciências Sociais.