Os momentos de Bertolt Brecht no Brasil

Comunicação apresentada em 17/08/04, na XII ª Semana de Ciências Sociais da PUC-SP/ 2004 no Grupo de Trabalho: Linguagens e estéticas transversais.

Eduardo Viveiros*

Bertolt Brecht (1898-1956), poeta e dramaturgo alemão, teve suas obras traduzidas e peças teatrais montadas no Brasil, ao longo do século XX, e está em cartaz neste novo século. A presente comunicação abordará alguns desses momentos, e procurará pontuar aspectos estéticos e políticos da trajetória de Brecht entre nós.

Sobre a vida e obra de Bertolt Brecht, escrevi em outro trabalho, apresentado no Seminário “Arte e Política”, em 1998, promovido pelo NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) . Aqui, serão abordados alguns momentos da recepção de suas idéias, a montagem de suas peças teatrais, e a influência do autor sobre o teatro brasileiro, especificamente o teatro feito em São Paulo. Serão pontuadas algumas observações sobre o momento estético e político em que isso acontece.

Um desses momentos é a montagem da peça O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, em 1967. Escrita em 1933 e publicada em 1937, a peça de Oswald de Andrade representou o exemplo inaugural de um teatro concebido segundo os princípios do modernismo, para o crítico Sábato Magaldi. A análise cor de rosa da realidade brasileira é substituída por uma visão desmistificadora do Brasil. A peça demole todos os valores sobre os quais se erigiu a “nacionalidade” brasileira, é inovadora do ponto de vista cênico, renega a tradição teatral da época, utilizando-se da paródia, da caricatura feroz, introduzindo a estética da descompostura. “A burguesia só produziu um teatro de classe. A apresentação de classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração”, definia o programa a ser desenvolvido pelo espetáculo. No ano de 1967, a montagem do Oficina tirou a máscara do Brasil.

Mesmo admitindo que dificilmente Oswald de Andrade conhecesse Brecht, cuja Ópera dos Três Vinténs havia sido apresentada em Paris, após a temporada alemã de 1928, é possível especular sobre a utilização pelo autor, ao escrever a peça, mais de uma vez, do efeito de estranhamento (ou distanciamento) criado pelo dramaturgo alemão. A peça talvez não tenha sido escrita sob a influência de Brecht, mas a montagem do Oficina de José Celso Martinez Corrêa, tendo Renato Borghi no papel principal, carnavalizava o Brasil colonizado, e apresentava as estratégias de sempre de que se valem, na visão de Oswald, as classes privilegiadas para preservar seus interesses. O golpe militar de 1964 havia feito o país regredir a um melancólico obscurantismo, a vida havia como que se paralisado, e uma das frentes de resistência (em alguns momentos, a única) estava na luta cultural, no embate estético.

As idéias de Brecht já eram mais ou menos conhecidas no Brasil, desde sua morte em 1956. Sobre o autor, o crítico Sábato Magaldi escrevera um artigo para o Suplemento Cultural do Estadão nesse mesmo ano. Uma montagem de A Alma Boa de Setsuan foi realizada em 1958, pela Companhia Maria Della Costa-Sandro Polloni, em São Paulo. Não apenas a capital paulista, mas Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre, principalmente, viram montagens de Brecht nesses mais de 40 anos em que o autor é conhecido no Brasil.

A influência das idéias e da estética do dramaturgo alemão é patente em autores, diretores e demais artistas de teatro, em instituições e entidades culturais e políticas como Oduvaldo Vianna Filho, o “Vianinha”, e nos CPCs da UNE (Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes). De Augusto Boal, criador do Sistema Curinga, inspirado no distanciamento brechtiano, os textos e montagens como Revolução na América do Sul, Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, e todo o desenvolvimento posterior de sua teoria teatral (Teatro do Oprimido, Teatro-Fórum, Teatro Invisível e Teatro Legislativo), são realizações que devem muito ao Pequeno Organon (1948) e ao Teatro de Brecht.

Também nesse quadro insere-se o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, na já citada montagem do Rei da Vela, e nas elogiadas Galilei Galileu e Na Selva das Cidades, do próprio Brecht, e mesmo no polêmico Roda Viva, de Chico Buarque, dirigido por José Celso. Ainda Gianfrancesco Guarnieri (que apesar de usar “black tie” na forma dramática, não deixou de fazer um macacão épico, contrariando Iná Camargo da Costa), Francisco de Assis, Aderbal Freire Filho, O Grupo Opinião e seus shows (no Rio de Janeiro), Fauzi Arap, Dias Gomes, e, por que não?, Millôr Fernandes, no momento em que concebeu o espetáculo “Liberdade, Liberdade”, junto com Flávio Rangel.

“Liberdade, Liberdade”, um roteiro recheado de textos de vários autores e personalidades da história humana (Brecht ao lado de Churchill, Shakespeare, Manuel Bandeira, Sócrates, entre outros), foi transformado em espetáculo em 1965/1966, no Rio de Janeiro e em São Paulo e assim foi recebido pelo crítico Athos Abramo:

A atenção do público é mantida sempre agudamente alerta pela inteligente, sóbria e eficaz intercalação entre roteiro e textos escolhidos (….) o espetáculo ‘voa’, por assim dizer, num dramático jogo, intenso e penetrante, entre o quase sempre épico dos textos e o quase sempre satírico do roteiro, num diálogo de natureza coral entre sentimento e razão, no qual tomam forma e expansão tanto a consciência da nossa condição coletiva como a da nossa condição individual e íntima.

Paulo Autran e Oduvaldo Vianna Filho, ao lado de Teresa Rachel, garantiram a qualidade do espetáculo. Não deixa de ser interessante, porém, a observação do mesmo crítico sobre o trabalho da atriz: “Também o trabalho de Teresa Rachel merece destaque. Na cena de Brecht ela atinge uma comovente intensidade”. A “tropicalização” de Brecht fez com que fossem encontrados argumentos para contestar os que consideram que a pesquisa formal de Brecht, na busca de uma ciência em cena, ciência do homem , reduzia tudo à categoria do objeto (racional, frio), sem deixar espaço para a subjetividade, a emoção.

Para ficarmos no momento político-estético mais sensível da recepção de Brecht no Brasil, as experiências e artistas acima mencionados um pouco caoticamente, que aconteceram/ atuaram, principalmente, dos anos 50 a fins dos anos 60, podem ter deixado de lado o apuro na aplicação dos postulados teóricos e técnicos criados por Brecht. Mas convém não esquecer que, no enfrentamento político-cultural dos primeiros tempos da ditadura, importava mais o “que” se fazia do que “como” se fazia. O “como” foi feito, o julgamento severo de autoras como Iná Camargo da Costa, no seu “A Hora do Teatro Épíco no Brasil”, pode ser “comodamente” feito com a devida distância no tempo (1996). Resta saber se, mesmo assim, faz-se justiça estética a criadores que atuaram em condições tão adversas. De resto, a resposta do “imortal” Sábato Magaldi às críticas da autora em artigo do mesmo ano (Polêmica do Teatro Épico – 1996), republicado no seu “Depois do Espetáculo” (2003), faz um contraponto que merece ser lido.

Do ponto de vista da crítica e do movimento editorial, Brecht foi e vai bem, obrigado, no Brasil. A partir de críticos, pesquisadores e ensaístas como Anatol Rosenfeld, o citado Sábato Magaldi, Ingrid Koudela, Gerd Bornheim, Jaco Guinsburg, Antonio Pasta Jr, Fernando Peixoto (tradutor, também, do Teatro Completo de Brech -12 vols.- , e mais recentemente, Sérgio de Carvalho, Márcio Marciano; de tradutores como Manuel Bandeira (O Círculo de Giz Caucasiano), Christine Röhrig (O declínio do egoísta Johann Fatzer), Paulo Cesar Souza e Geir Campos (Poemas e Canções) e Maria Silvia Betti (O Método Brecht, de Frederic Jameson), pudemos ter acesso a muitas obras do autor e sobre sua vida e postulados teóricos.

Num breve percurso pelos anos 70 e 80, vimos o arrefecimento da censura (sem esquecer Plínio Marcos, ao lado de Nelson Rodrigues, um dos autores mais censurados do Brasil), com o fim do AI-5, e o surgimento de um novo tipo de teatro, agora não mais baseado na força da dramaturgia, que entrou em fase de declínio no Brasil nos anos 80, quando o texto deixa de ser uma das fontes principais para o espetáculo teatral. Na chamada década perdida (pelos economistas…), o teatro dos anos 80 viu minguar a criatividade e frustrar-se a expectativa de que, com a redemocratização, o universo dramatúrgico represado pelos anos de censura iria fazer despontar os melhores textos teatrais. As metáforas dos anos 60 e o experimentalismo (a “criação coletiva”) dos anos 70 revelaram-se obsoletos para uma era de individualismo exacerbado, predomínio da imagem e busca do efeito estético que impressionava, como os anos 80.

Em parte o vácuo foi preenchido pelo besteirol (Mauro Rási), mas a hegemonia foi quase total dos encenadores-criadores, como Antunes Filho, Gerald Thomas, Ulisses Cruz, William Pereira, Moacir Góes, e outros, mais ou menos presentes na cena teatral ao longo da década, que teve também a presença de Eduardo Tolentino e o conjunto preciso de seu Grupo TAPA. Espetáculos belíssimos foram criados, mas sem a força instigante do teatro épico. Temos, isoladamente, uma bela experiência que se perdeu com a morte de Luiz Roberto Galízia, e a mudança de foco para Molière, por seu animador, Cacá Rosset, que foi a do Grupo Ornitorrinco, que montou Mahagonny e produziu a colagem Ornitorrinco Canta Brecht e Weill, de onde derivou a produção do espetáculo solo Cida Moreyra Canta Brecht.

Dos anos 90 para cá, o momento de ressurgimento de Brecht como força propulsora estética e politicamente, para o teatro brasileiro, coincide com a retomada do trabalho em grupo, com as propostas, em São Paulo (frize-se), da Companhia do Latão, Folias D´Arte, Parlapatões, Teatro Ágora, Teatro da Vertigem, Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes e outros grupos. Animado por jornalistas, críticos e militantes teatrais, o Movimento Arte Contra a Barbárie produziu um projeto de lei, encampado por um vereador do PT, Vicente Cândido, aprovado e sancionado pela prefeita da capital, Marta Suplicy, que deu origem à Lei de Fomento ao Teatro, provedora de espaços (teatros da prefeitura) e recursos (dotações anuais parceladas mês a mês) que permitem o necessário fôlego para o desenvolvimento de trabalhos a médio e longo prazo.

Brecht continua sendo a referência para os artistas desses grupos, não apenas como autor mais próximo ideologicamente de sua formação política, e da relação pragmática que se estabeleceu entre esses grupos e o poder público na atual gestão petista da cultura em São Paulo, mas principalmente pelo desafio que representa aos criadores. Aí estão dramaturgos, dramaturgistas, em colaboração direta com atores, diretores, cenógrafos, no chamado processo colaborativo, ou na criação de uma dramaturgia em processo, à procura de caminhos para o teatro no Brasil.

É obrigatória a referência a Antônio Araújo e os atores do Teatro da Vertigem (atualmente em viagem de pesquisa pelo interior do Brasil no Projeto BR3); ao manancial criativo de Luis Alberto de Abreu – e seu Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André e a Fraternal Cia de Artes e Malas-Artes; à pesquisa fundamentada em sólido trabalho teórico e prático de Sérgio de Carvalho, Marcio Marciano e a Companhia do Latão; a Reinaldo Maia, Marco Antonio Rodrigues e atores do Galpão Folias D´Arte; nos seminários e publicações que esses grupos, como o Teatro Ágora, têm produzido.

Neste milênio que se inicia, as condições políticas e estéticas nunca foram tão boas para se compreender as idéias e o teatro de Brecht. Existem outras referências do universo teatral, como Artaud, Boal, Eugênio Barba, Grotowski, Peter Brook. Há uma busca incessante no teatro, talvez mais do que na sociedade, por um sentido para o Homem. E isso não se traduz só em imagens, mas em palavras, em ações, em novos personagens e propostas cênicas.

Finalizo este texto ao comentar a montagem da UNICAMP de Terror e Miséria do Terceiro Reich, que esteve em cartaz até 11/08/04 na “Casa das Caldeiras”, na avenida Francisco Matarazzo, aqui em São Paulo. O diretor, Marcelo Lazzaratto, fez uma excelente leitura de 16 dos 24 quadros da peça, escrita por Brecht no exílio, entre 1935 e 1938. O uso do espaço de uma antiga fábrica dos Matarazzo, com ambientação de cenas em diversos locais que lembram os porões do nazismo, e a generosidade do elenco de jovens estudantes de teatro da UNICAMP, traziam aos espectadores imagens e momentos que já foram mostrados de diversas maneiras pela mídia, pelo cinema, por fotografias e pela crueza de documentários sobre o holocausto. No entanto, nos quase 200 minutos de espetáculo, quando nos locomovemos por aquele espaço, vimos – porque isso nos foi mostrado pelos atores, didaticamente – quanto o medo pode destruir vidas, valores, conceitos, projetos, indivíduos e nações. Não estávamos lá para sentir, não precisávamos nos identificar com o sofrimento humano ali mostrado. Como não precisamos nos identificar, talvez possamos refletir sobre o que vimos e ouvimos. Duas conclusões: tanto abjeta pode ser a piedade, como quanto cínica é a compaixão. E o mais covarde é o que apenas se “solidariza” com o sofrimento alheio.

Hannah Arendt mostra, num ensaio sobre Brecht, publicado no livro “Homens em tempos sombrios”, o percurso atormentado do jovem hedonista para o homem em dúvida sobre suas escolhas, ao final da vida, e a submissão do poeta ao stalinismo, em sua volta “ao lar”, quando ganhou de presente um teatro do Estado, o Berliner Ensemble. Ora, o “pobre B.B.”, que nunca “desperdiçou nenhuma partícula de piedade consigo mesmo”, não queria ensinar ou ser modelo para ninguém, apenas quis ser o que mais desejou ser na vida: poeta. E olhem que isso não é fácil, em qualquer tempo ou lugar…

*Eduardo Viveiros é doutor pela PUC-SP e membro do NEAMP.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro, 2ª edição, revista e ampliada até 1980, Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1991.

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios; tradução Denise Bottmann, São Paulo : Companhia das Letras, 2003.

COSTA, Iná Camargo. A Hora do Teatro Épico no Brasil; Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

_________________. Sinta o Drama; Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1998.

GUINSBURG, Jacó. Da Cena em Cena: ensaios sobre teatro; São Paulo, Editora Perspectiva, 2001. — (Estudos; 175).

MAGALDI, Sábato. Depois do Espetáculo; São Paulo, Editora Perspectiva, 2003. — (Estudos; 192).

________________. Moderna Dramaturgia Brasileira; São Paulo, Editora Perspectiva, 1998. — (Estudos; 159).

MÜLLER, Heiner. Germânia 3: os espectros do morto-homem (peça teatral); tradução de Eduarda Dionísio e Maria Adélia Silva Melo; Lisboa, Portugal, Edições Cotovia, 1997.

ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães; Campinas, São Paulo, Editora da UNICAMP, EDUSP, Ed. Perspectiva, 1993. — (Debates; 255).

Jornal O SARRAFO, ano I, nºs 01 a 06, disponíveis em http://www.jornalsarrafo.com.br.

Publicado por Neamp

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