Genira Chagas*
A eleição presidencial de 2014 ficou registrada como uma das mais disputadas após a de 1989, na qual Fernando Collor de Mello foi vitorioso. Passado o período eleitoral, permanece o clima de disputa entre grupos. Em clara demonstração de descontentamento pela reeleição da presidente Dilma Rousseff, os mais extremistas foram às ruas, seis dias depois do fim da eleição, pedir a volta do regime militar, entre outras pautas.
O ano de 2014 tem sido de muitas manifestações. Essa do dia 1 de novembro, contudo, não pegou bem. A ditadura militar instaurada em 1964 custou caro demais aos brasileiros. O país ainda luta para cicatrizar as feridas abertas em decorrência das arbitrariedades cometidas naquele período. Sendo assim, há de se perguntar se os manifestantes que foram às ruas após as eleições têm noção de como foi engendrado o golpe de 1964 e, mais do que isso, o que ele significou para a nação, indivíduos, famílias.
Este texto trata de resgatar a história que antecedeu ao golpe civil-militar de 1964, talvez desconhecida da maioria dos manifestantes de 1 de novembro. Diante da narrativa a seguir, ficam questões como: o país quer realmente a volta dos militares? Há ambiente e disposição para a organização de outro evento semelhante ao golpe de 1964?
Dose de história – No período da Guerra Fria (1945 – 1991) o mundo estava dividido. Havia uma intensa disputa econômica, política, diplomática e ideológica pela conquista de zonas de poder. Dois blocos se formaram em defesa de diferentes credos ideológicos. De um lado, os Estados Unidos pela livre iniciativa comercial. Do outro, a União Soviética em prol do comunismo. Para os EUA e as elites política e econômica de perfil antinacionalista, o Brasil não poderia ser convertido em outra Cuba no continente Americano. No entendimento dos EUA, o país exercia importante influência na América Latina, fato relevante a justificar uma intervenção nos rumos dos acontecimentos.
Com a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart na Presidência da República, em 1961, um grupo formado por empresários e representantes da classe política, com o apoio de militares e forte aporte financeiro dos Estados Unidos, articulou a criação do complexo formado pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). O objetivo explícito do complexo político-militar era conscientizar os industriais, comerciantes, banqueiros, e demais empresários, da importância deles no desenvolvimento do país e articulá-los contra o governo reformista de João Goulart. Por outro lado, o complexo necessitava da adesão da opinião pública na batalha que se seguiria contra a política anticomunista.
Articulação – O IPES foi formado em 1961, logo após a posse de João Goulart. Moniz Bandeira (2010) o cita como uma estrutura radical de direita, em estreita ligação com a CIA., a agência de inteligência Norte-Americana, “no esforço de corrupção e de intrigas, para influenciar nas eleições, impor diretrizes ao Congresso, carcomer os alicerces do governo e derrocar o regime democrático”.
Em sua obra magistral, 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe, Dreifuss (2008) discorre sobre a preparação estratégica do complexo. “Diversos grupos de ação foram criados, como o de ‘Levantamento e Conjuntura’, ‘Assessoria Parlamentar’, ‘Publicações/editorial’, ‘Estudo e Doutrina’ e ‘Opinião Pública’. Para o propósito desse texto, abordaremos apenas o Grupo de Opinião Pública (GOP).
As metas formais do GOP, segundo Dreifuss, eram a disseminação dos objetivos e atividades do IPES por meio da imprensa falada e escrita, com a função manifesta de manipular a opinião pública por todos os meios disponíveis.
Para dissimular o seu verdadeiro propósito, evitava-se o uso do termo opinião pública. Ao contrário, os ativistas do complexo IPIS/IBAD falavam de divulgação e promoção. “Era tão importante o GOP que o General Heitor Herrera o considerava como a base de toda a engrenagem. Da mesma forma, para o líder José Luiz Moreira de Souza, conquistar a opinião pública era a essência da ação política. Influente nas ações do complexo, o General Golbery do Couto e Silva assegurava que a falta de preparo ideológico do povo impediu o êxito do golpe de 1961,” destacou Dreifuss.
O autor cita que, inicialmente, o GOP enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, incitando a opinião pública e fortalecendo as mensagens do complexo IPIS/IBAD. A atuação seguinte foi a ampla campanha pela imprensa e mobilização da classe média. Pretendia-se neutralizar as ações do governo João Goulart e protelar a organização política das classes trabalhadoras
Na criação de um discurso unificado e coerente, capaz de mobilizar a opinião pública e sustentar a opinião da oposição, o complexo IPES/IBAD distribuía material em todos os meios de imprensa nacional. Cunha (2010) lembra que a campanha anticomunista promovida pelo consórcio dos dois institutos era tão ostensiva, que em 1962 o IBAD arrendou o jornal carioca A Noite para fazer propaganda direta aos leitores. Ainda segundo o autor, a partir de 1963, grupos de profissionais organizados divulgavam manifestos em favor da causa “democrática”, cuja agência de notícias o Planalto, vinculada aos anticomunistas, os redistribuía gratuitamente a 800 emissoras de rádios e jornais do país.
“O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia. Estavam escaladas neste time algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer,” discorre Cunha, que complementa: “Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a ‘Cadeia da Democracia’, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados,” relata Cunha.
O trabalho do IPES envolvia uma operação minuciosa de leitura da produção diária da imprensa do país visando o acompanhamento da conjuntura econômica e política, bem como a compreensão do estado de espírito da população. A operação de mídia consistia em uma ampla propaganda política para conduzir a população a aceitar o golpe militar. As técnicas mais empregadas compreendiam a divulgação de publicações, palestras, simpósios, conferências de personalidades famosas por meio da imprensa, debates públicos, filmes, peças teatrais, desenhos animados e propaganda.
Dreifuss cita o relacionamento do IPES com os mais importantes jornais, rádios e emissoras de televisão nacionais, lembrando que representantes de alguns desses veículos eram também associados ao Instituto. A relação da mídia jornalística favorável à ação do IPES inclui, entre outros meios não menos importantes em todo o país, os Diários Associados, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e o extinto Jornal da Tarde, Diário de Noticias, Jornal do Brasil, Correio do Povo, O Globo, a Tribuna da Imprensa, este de propriedade de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, o mais contundente militante anti-Jango
Em estreita sintonia com o IPES/IBAD, esses veículos de imprensa também mantinham sua própria e acirrada campanha editorial. No Grupo de Levantamento e Conjuntura o IPES se certificava de que os editores dos mais importantes jornais dirigiam seus empreendimentos em consonância com o pensamento do Instituto.
Em sua obra, Dreifuss assegura que um fluxo constante de denúncias diárias era instrumentado pelo GOP. Através de associações de ideias fazia-se uma miscelânea de condenações a João Goulart, ao Partido Comunista, Tito, Mao, Cuba, uniões estudantis, sindicatos, à reforma agrária, à estatização, ao Partido Trabalhista Brasileiro, corrupção, ineficiência e socialismo.
Em depoimento para o documentário O dia que durou 21 anos, o ativista político Plínio de Arruda Sampaio, falecido em 2014, lembra que a ação do IPES se dava em todos os cantos do país. Filmes exaltando o anticomunismo e as virtudes da “democracia” eram exibidos em praça pública nas pequenas localidades; panfletos eram distribuídos nas fábricas, sindicatos; palestras eram proferidas nas escolas. “Dia e noite as emissoras de rádio e televisão promoviam programas difamando Goulart”.
Desfecho – No período entre a posse de João Goulart, em 1961 – que coincide com a institucionalização do IPES –, até março de 1964, a opinião pública foi bombardeada com informações em favor da “democracia” e da livre iniciativa capitalista; dos valores da família, da religião e da paz, de modo a criar um ambiente controverso. A tensão de oposição fomentada pelo IPES/IBAD explodiu em 19 de março de 1964, com a realização, em São Paulo, da Marcha da família com Deus pela liberdade.
Idealizada pelo deputado federal Antônio Silvio Cunha Bueno e organizada por diversos grupos, entre eles a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina (UCF), Fraterna Amizade Urbana e Rural, com o apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a Marcha reuniu milhares de pessoas e foi considerada pela cúpula da oposição como a demonstração necessária de que a opinião pública não se oporia a uma intervenção militar no país.
A Marcha foi organizada em resposta ao comício realizado por João Goulart no dia 13 de março de 1964, considerado violento pela oposição. Os grupos femininos que a lideraram, os mais importantes do país, eram orientados politicamente pelos dois Institutos. Entre as atividades das donas de casa, constam a mobilização de esposas de militares, sindicalistas e funcionários públicos, utilizando discursos anticomunistas e um rosário como instrumentos.
Marcha da família com Deus pela liberdade sintetiza a vitória dos esforços empreendidos pelo IPES/IBAD. Na ocasião, não somente houve a mobilização de uma opinião pública contrária aos programas do governo, como também ali havia representantes dos diversos segmentos aliciados, entre empresários, políticos, jornalistas, donas de casa, estudantes, dirigentes sindicais, padres, camponeses, enfim, elementos de todas as classes e categoria da sociedade civil. Moniz Bandeira (2010) analisa o trabalho empreendido pelo IPES/IBAD como um inédito caso de corrupção na história do Brasil, com amplo financiamento da CIA.
*Pesquisadora do NEAMP e jornalista na UNESP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CUNHA, Luiz Cláudio. Do golpe à redemocratização: os ventos da mídia na tormenta de 1964. Observatório da Imprensa, 26 jan. 2010. Armazém Literário. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ventos_da_midia_na_tormenta_de_ 1964. Acesso em 15 mar. 2014.
DREIFUS, René Armand. 164: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 7ª edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 8ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
TAVARES, Camilo e TAVARES, Flávio. O dia que durou 21 anos. Documentário. Distribuição: Pequi Filmes, 2013.