Genira Chagas Correia*
Em 30 de abril de 2009, sete dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram pela revogação da Lei 5.250 – Lei de Imprensa –, publicada em 9 de fevereiro de 1967. Assinada pelo Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do período governado por militares, a norma visava regular a liberdade de manifestação do pensamento e da informação, trazendo em seu bojo um viés repressor. Sua extinção não foi por unanimidade e o debate entre os juizes da suprema corte se estenderam por longas horas, o que reflete a delicadeza da matéria. Três ministros votaram pela revogação parcial e um pela não revogação.
Após os ventos democráticos trazidos com a promulgação da Constituição de 1988, a regulação da atividade jornalística por uma legislação que reflete o ideário dos anos de exceção passou a incomodar tanto entidades vinculadas às empresas do setor quanto as que representam os profissionais. No entanto, pouco foi feito pelo Congresso Nacional para sanar tal mal-estar. A iniciativa melhor sucedida partiu do então deputado federal Vilmar Rocha (DEM-GO), cujo projeto de lei 3.232/1992 chegou a ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em 1997, e desde então engavetada.
O ato de deixar as coisas acontecerem ao sabor das ondas passou a ser rotineiro entre os políticos nacionais. Há fatores que contribuem para esse estado de coisas. Um exemplo importante diz respeito ao trancamento da pauta pelas sucessivas medidas provisórias do presidente da República. Essa prática afasta os legisladores de seu papel principal, como zelar pela eficiência das leis. Pelo regimento das casas legislativas, enquanto os parlamentares não votam as medidas provisórias não podem debruçar-se sobre suas funções. Em decorrência disso, instaurou-se no Congresso uma política de favorecimento. Se as medidas são votadas, os autores dos votos da aprovação ganham a confiança do presidente. E estar bem com o presidente pode ser melhor para os projetos pessoais do que ter de enfrentar os debates pelo bom andamento da coletividade. Em parte por isso, a aprovação dos projetos importantes para a nação acaba na fila da emergência.
Eis que em dezembro de 2007 surge a emergência responsável pela retomada da discussão sobre a validade da extinta Lei. A jornalista Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo, então publica a reportagem “Universal chega aos 30 anos com império empresarial”, na qual relata o patrimônio da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), supostamente conquistado pelas emissoras de rádio e televisão compradas com donativos dos fiéis. Sentindo-se ofendidos moralmente, com base na Lei de Imprensa, cerca de 50 deles, aparentemente instruídos pelos chefes da IURD, entraram com ações em diversas varas do país contra a Folha de S.Paulo e a autora da reportagem. A mesma Lei foi mobilizada para pedir indenizações aos jornais Extra, do Rio de Janeiro, e A Tarde, da Bahia, e aos jornalistas que escreveram matérias sobre atos de vandalismo contra a igreja católica baiana, atribuídos a fiéis da Universal.
Embora as ações tenham sido julgadas improcedentes, o incômodo causado pela circunstância trouxe à tona o espírito da extinta Lei, cujos artigos embutiam mecanismos de cerceamento de informações relevantes para a nação. Mobilizado por esta emergência, em fevereiro de 2008, mesma ocasião em que mais de 60 processos dos fiéis da Universal contra a Folha se tornaram públicos, o deputado Miro Teixeira (PDT/RJ) solicitou sua revogação, por meio de uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), em nome do PDT. Ao se utilizar da ADPF – instrumento constitucional para tornar ágil o julgamento de ações –, o deputado livrou a discussão do tema em várias instâncias, colocando-o diretamente na pauta do STF, justamente por entender sua emergência.
De fato a Lei de Imprensa trazia em seu bojo regulamentações verdadeiramente desnecessárias em um estado democrático. O parágrafo terceiro do artigo 20, por exemplo, representava um entrave para o exercício da imprensa em seu papel de fiscalizador do poder público. Literalmente o texto dizia: “Não se admite a prova da verdade contra o Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Chefes de Estado ou de Governo Estrangeiro, ou seus representantes diplomáticos”. Enquanto esteve em vigor, parte daquela Lei parecia incompatível com a Constituição atual, cujo artigo 220 do capítulo relativo à Comunicação Social declara que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
A manobra do deputado para apressar o julgamento da validade da Lei de Imprensa pode ter sido um esforço no sentido de livrar o país de um instrumento antigo utilizado para legislar sobre assuntos atuais da comunicação social e seus desafios diante dos avanços tecnológicos das mídias. Mas é consenso que sua extinção não vai resolver os problemas surgidos com a rotina dos profissionais de imprensa. Faz-se necessária uma regulamentação para temas como o direito de resposta; calúnia, injúria e difamação; valores de indenização; responsabilidade do editor-chefe em relação a textos não assinados; limite do direito da crítica, entre outros assuntos previstos na extinta Lei e que, agora, dependem de interpretações dos Códigos Penal e Civil.
Dentro dos preceitos democráticos, o PL 3.232/1992, chamado substitutivo Vilmar Rocha, contempla os assuntos que mais afetam o cotidiano da atividade de imprensa. Com apenas 33 artigos, 44 a menos que a extinta Lei, o substitutivo estabelece um roteiro atualizado, correspondente ao padrão contemporâneo da atividade jornalística e adequado para o julgamento dos conflitos inerentes à profissão.
Por trabalhar com opiniões, a atividade jornalística é singular. Seus crimes não podem ser punidos pelos mesmos instrumentos jurídicos previstos para julgar crimes comuns. Sem uma lei que regulamente seu exercício, empresas do setor e jornalistas ficarão sujeitos a interpretações daqueles Códigos e à jurisprudência. Assim como outras profissões contam com normas próprias para amparar suas atividades, a imprensa também necessita de regulamentação. Imprecisões em julgamentos de matéria jornalística podem incorrer em injustiças tanto para as organizações jornalísticas e seus profissionais quanto para indivíduos.
Um estado democrático anda de mãos dadas com a liberdade de expressão. Mas isso não significa ausência de um instrumento regulador da atividade da imprensa. O espírito de uma lei no âmbito de uma democracia não deve ser o de cercear a informação a que a sociedade tem direito. Ao contrário, ela estabelece os limites até onde se pode chegar sem incorrer em abusos. A falta de um balizamento legal pode impor autocensura ao profissional, resultando em desinformação exatamente pela insegurança causada por inexistência de limites.
*É doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, jornalista e editora de conteúdo do Portal UNESP – Universidade Estadual Paulista.